Aviso aos pacientes: este blogue é antianalgésico, pirético e inflamatório. Em caso de agravamento dos sintomas, escreva aos enfermeiros de plantão.
Apenas para administração interna; o fabricante não se responsabiliza por usos incorrectos deste fármaco.

Não afastes teus olhos dos meus

sungani.jpgTenho uma coisa muito importante a dizer sobre as recentes saídas do Fernando Venâncio e do Daniel Sá do Aspirina B e que, porventura, irá abalar as fundações da blogosfera: os Animal Collective vão dar dois concertos em Portugal no mês de Maio – dia 27 no Porto (cinema Batalha) e dia 28 em Lisboa (Lux). Como foi muito bem referido pelo Fernando Venâncio antes de abandonar o Aspirina, os Animal Collective são a maior banda do planeta e, por isso, se quiserem evitar a criação de uma imagem de vós próprios à qual não estão habituados (o que é uma verdadeira chatice, perguntem ao Daniel Sá), vejam lá se compram bilhetes antes que os mesmos esgotem (os bilhetes, não o Fernando Venâncio e o Daniel Sá, que são inesgotáveis). Mas eu não conheço a banda, exclamarão alguns (entre os quais julgo vislumbrar o tom pouco cuidado nas sílabas e na acentuação do José do Carmo Francisco) – não se preocupem, caralho: não estou eu aqui para outra coisa. Começo por este singelo «Leaf House», uma cançoneta sobre gatinhos, que é suficientemente estranha e genial para separar o trigo dos mais preguiçosos. Ah, ao contrário do Daniel Sá, que, pelos vistos, está alojado nas antípodas do Venâncio, direi que não vou dizer se gostei ou não de não estar aqui. Se dissesse o que não disse sobre o quanto gostei de não estar, continuaria a não estar, né. Desejo-vos, sinceramente, a ausência de qualquer problema pancreático.

LEAF HOUSE (Animal Collective, 2004)

This house is sad
Because he’s not
Inside it

Where does he hide
When someone comes?
To the front door

There’s no one to say: Meow, kitties!

Adeus

Criei, ou criaram de mim, uma imagem a que não estou habituado. Talvez esta seja a verdadeira. Tanto pior se o for, e tanta mais razão para que eu deixe o espaço por conta apenas dos puros de coração. Ao contrário do Fernando Venâncio, não direi que gostei de estar aqui. Se gostasse, continuaria. Desejo-vos, sinceramente, o melhor na vida.

Rosa Luz

Há uma rosa a arder. Já não é lume
Apenas foco de luz sem combustão
No fósforo mal aceso deste ciúme
Só sobejaram os sinais da tua mão

A tua boca foi o botão anunciado
Os teus dedos o que ficou da haste
Procurei a tua voz em todo o lado
Mas foi na rosa ardida que ficaste

Trezentas e quarenta palavras

TREZENTAS E QUARENTA PALAVRAS
(Em memória do Capitão Salgueiro Maia e do cantor José Afonso)
Conheces o gosto da anona? E o cheiro do incenso em flor nas noites húmidas? Talvez.
Mas com certeza não serás capaz de os explicar. Nem eu nem ninguém.
Existem coisas assim: os sabores, os cheiros, as cores, os sentimentos… Há muitos milhares de palavras, mas nenhumas são suficientes para dizer aquilo que só quando se sente se sabe como é.
Eu gostaria de inventar as palavras que faltam à nossa Língua, a todas as línguas do Mundo, para falar de Abril. Em Portugal. Num dia com cravos a florir nas espingardas, porque ninguém queria usá-Ias para matar.
Estavam cansados da guerra, uma guerra má como todas as guerras. Em Angola e em Moçambique e na Guiné. Era o medo em Portugal. Havia verdades que era proibido dizer. Havia muita gente que mal tinha que comer. Havia muita gente sem casa onde morar.
Foi na madrugada de 25 de Abril de 1974. Os homens que mandavam neste país, e que não queriam que ele mudasse, talvez dormissem àquela hora sem sonhar com o que ia acontecer. No rádio, uma canção começou: “Grândola, Vila Morena”. (Uma revolta que começa com uma canção, sobretudo uma canção como aquela, tem de ser uma revolta boa). Era o sinal combinado. Os militares saíram dos quartéis para dizer ao governo que não o suportavam mais, mas ainda não se sabia quantos portugueses estavam no mesmo lado. Logo se percebeu que eram quase todos, afinal.
E a revolução tornou-se numa festa tão bonita que esse dia foi um dos mais belos da História de Portugal. Foi uma alegria tão grande que se chegou a pensar ter valido a pena tanto tempo de sofrimento e medo para que ela acontecesse…
Mas não! A água mais apetecida é a que se bebe depois de uma longa e penosa sede, e ninguém se deixa estar dois ou três dias sem beber só para ter um gosto enorme ao beber…
Se eu pudesse inventar as palavras que faltam à nossa Língua para dizer isto melhor, nunca mais haveria alguém capaz de duvidar de como foi lindo aquele dia, nunca mais ninguém haveria de permitir que alguma coisa, neste país, se parecesse com as coisas ruins de antes. E muito depressa se mudaria o que ainda não houve tempo de mudar.

de fazer parar o trânsito

A rua é sossegada e o sentido único. Desisti de atravessar, na passadeira, ao ver que o automóvel vinha demasiado depressa. À última hora estacou. Seguiu-se ruidosa travagem de quem vinha atrás. Enquanto atravessava, o velhinho ao volante do primeiro carro dirigiu-me um sorriso apologético e baixou os olhos, envergonhado. Devolvi-lho, acenei que não, encolhi os ombros.
Atrás dele, de janela aberta, o homem novo meneia a cabeça, não e não, reprovador. Duas pregas fundas encimam-lhe a cana do nariz quando explode em direcção a mim:
A promover acidentes!

O meu 31

Rui Castro, um dos autores do 31 da Armada — blogue onde escreve Rodrigo Moita de Deus, que já por aqui passou — convidou-me para um poste. O resultado foi este.

O Rui desafiou um conjunto de personalidades seguindo o seu estrito critério de gosto na leitura, daí o convite. Começou a série com José Tolentino de Mendonça, seguindo-se Ana Cláudia Vicente, Pedro Correia, Filipe Nunes Vicente, Jacinto Lucas Pires, Pedro Picoito e Pedro Rolo Duarte, até agora. Perante o alto perfil desta lista, e tendo em conta que o Rui e eu trocámos os primeiros emails por causa do seu desafio, a minha surpresa, e estulta vaidade, não pára de aumentar.

Excelente iniciativa, num excelente blogue. Mas só para quem gosta da direita inteligente, atenção.

Amo-te, Chalana

chalana1.jpg

[Nota prévia: tenho mais de 25 anos como sócio do Sporting e as quotas em dia]

No jogo da Taça, em Alvalade, a câmara apanhou Chalana a festejar o segundo golo com movimentos labiais que me sugeriram a expressão Toma lá!, simultâneos com gesto castiço dos braços esticados junto ao corpo, mãos fechadas, na direcção do Shéu. Fiquei contente por ele, comovi-me com a sua juvenil alegria. Também eu celebrei com os lampiões a surpresa do 2-0 no meio da selva. E a coisa ameaçava o terceiro, a caminho do intervalo, o que teria sido, literalmente, espectacular.

Dias antes, jogo com a Académica, Chalana tinha estado na conferência de imprensa onde falou dos 3-0 como quem anuncia o desastre do Titanic aos familiares das vítimas, aos investidores arruinados e aos jornalistas incrédulos. E não era para menos: tal como com esse paquete de luxo, provando que a História se pode repetir duas vezes como tragédia, também o caríssimo Benfica tinha erros na estrutura, materiais de fraca qualidade e uma quantidade ridícula de botes de salvação. O afogamento era certo, marejava-se o coração da Nação Benfiquista.

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Vinte Linhas 256

Com que então «Digna-se estar presente» o Nobel

A Secretaria Geral do Ministério da Cultura enviou-me um convite no qual José António Pinto Ribeiro, o ministro da cultura, me convida para a inauguração da exposição «José Saramago – A consistência dos sonhos» organizada por Fernando Gomez Aguilera. Até aqui tudo normal. Mas a segunda parte do convite contém uma frase estranha «Digna-se estar presente o escritor José Saramago.» E digo estranha porque assim até parece que ele está num céu demasiado azul e demasiado alto de tal modo que se digna descer até nós. Vindo deste ministro que aparece a defender o acordo ortográfico como se dependesse dele a salvação do Mundo e que ainda há dias vi numa cerimónia protocolar na Biblioteca Nacional a impedir de modo hostil que um fotógrafo trabalhasse (fotografando o ministro) na entrega do espólio de José Cardoso Pires ao Estado Português, cheira um bocado a esturro. Ainda se o Nobel se dignasse estar presente para explicar porque fez desaparecer depois de 1992 os nomes das pessoas do Lavre que lhe contaram as histórias do livro «Levantado do Chão» e sem as quais o livro nunca teria sido escrito por uma pessoa que nunca viveu no campo mas sim na Penha de França… Além do nome da Isabel da Nóbrega, são estes os nomes suprimidos na dedicatória: João Domingos Serra, João Basuga, Mariana Amália Basuga, Elvira Basuga, Herculano António Redondo, António Joaquim Cabecinha, Maria João Mogarro, João Machado, Manuel Joaquim Pereira Abelha, Joaquim Augusto Badalinho, Silvestre António Catarro, José Francisco Curraleira, Maria Saraiva, António Vinagre, Bernardino Barbas Pires e Ernesto Pinto Ângelo. Mas não. Ele não se digna fazer isso. Tal como eu não vou lá pôr os pés. Safa!

“Eu Acho” que ele tem razão

Este comentário de um leitor que assina “Eu Acho” resume, quanto a mim, a situação de uma sociedade que perdeu completamente a noção de que há valores que devem prevalecer sobre os instintos. Por isso o transcrevo para aqui. Assumo a responsabilidade de todas as suas palavras, mas de modo algum o mérito de lhe ter dado mais visibilidade..
Daniel de Sá:
Quando os “residentes” não querem perceber, são os comentadores que passam por não terem percebido. Pois eu acho que percebi muito bem. O Daniel tem apenas razão quando refere a “vulvização” – à qual eu acrescento “vaginação”, “clitorização” e tudo o que diz respeito ao sexo dito sem tabus. Trata-se de uma moda – e de um negócio – a indicar-nos que estamos na Era do Sexo. Muitos dos que escrevem em blogs e noutros locais entendem que para além desse tema não existe mais nada com interesse. Que não há inspiração que suplante o sexo. É o sexo que vende. É o sexo que chama o leitor e, ao que parece, o comprador de “arte”. É moda e é um modo de estar na vida. Quanto mais chocante e desbragado, melhor
Eu acho que com um pouco mais de decoro, de respeito, daquela “reserva” de outros tempos, ainda recentes, todos ficaríamos a ganhar. O sexo tornar-se-ia mais apetecível, quer figurado, quer descrito por palavras. Assim, a tocar pública e abertamente as raias do promíscuo, do chocante, do obsceno, do provocante, do indecente, do sem-regras, vamos de mal a pior. Não havia, por exemplo, tantos casos de mães com 11 ou 12 anos de idade e pais com 13 ou 14 anos. Vamos chamar a isso “evolução” de costumes”? Tudo o que ultrapassa os limites é exagero. Lésbicas e homossexuais sempre os houve. Aberrações também. Não será daí que vem maior mal ao Mundo. Mas não a falta de decoro a que se assiste actualmente, o exibicionismo barato, ostensivo e chocante, que nos bate à porta todos os dias.
Outra coisa: não utilize tantas vezes a palavra «ironia» para tapar buracos. Nem sempre o leitor está à altura de detectar as suas “ironias” nos seus comentários. Chamar, em certos casos, a “ironia” para resolver situações mais controversas, é quase como dar o dito por não dito.
Susana:
Pois terá sido a moral «que impediu representações belíssimas do sexo e do corpo de virem a público». Estou de acordo. Não vem daí novidade. Mas como vamos nós incutir nos nossos filhos a moral que não temos? Os princípios que não nos regem? Que desplante será o nosso ao exigir-lhes condutas que não seguimos? Mesmo que o corpo não seja tabu entre pais e filhos? Sim, porque isso é outra coisa.
O sexo sempre foi tema na arte: pintura, escultura, literatura. Mas não atirado de qualquer maneira à cara de cada um! Hoje, qualquer bicho-careta aborda o tema, quer figurado, quer pela escrita, com grosseria, sem qualidade, sem beleza. Antes com obscenidade, sem pudor, sem preconceitos, como pseudo-arte. Porque é moda? Porque toda a gente o faz? Por dinheiro? É essa a liberdade de expressão artística de que usufruímos hoje?
Poderá dizer que o meu ponto de vista pertence a um passado conservador. Pergunto: passa a evolução das sociedades pelo arrasar de preconceitos lógicos, estéticos e morais? Não vamos, certamente, comparar, na pintura, um cesto de morangos com a representação de uma vagina. O pintor pode ser o mesmo e a sua arte também. Mas ir tão longe, mesmo tendo em conta o «impedimento moral de vir a público» – com as consequências que se entendem por morais ou de bom-senso – poderá tornar-se imoral, ou não?

Livros, gravuras, postais antigos

A porta que se abre na manhã fria
Vai revelar o mundo concentrado
Na altura das estantes da livraria
É possível viajar por todo o lado

Entre autores e títulos há viagens
Num mundo interior que perdura
Outros querem a luz das paisagens
Entre a cor e a sombra da gravura

Entre um livro raro e outro antigo
Entre a segunda mão e a novidade
Acabo por encontrar o que persigo
Para um texto sobre a minha cidade

Há muitos anos que Lisboa é minha
Quarenta e dois para ser mais exacto
Na livraria na estante mais sozinha
O teu olhar faz comigo um contrato

Sem notário ou registo de escritura
Sem cartório e testemunhas a assinar
No tempo de ansiedade e de procura
O teu olhar acende a bússola do lugar

O Ilhéu da Vila

Já que é para abandalhar o Aspirina, abandalhemos todos. E que me desculpem a rudeza deste soneto aqueles que me julgavam mais comedido.
Não fiz mais do que atender a um pedido do inefável Dr. Luciano da Silva, homem famoso pela sua crença no Colombo português, embora eu não seja vilafranquense. Explico. Ele descobriu uma notável semelhança entre o ilhéu de Vila Franca e os órgãos reprodutores e suas vias de acesso femininos, com um farilhão ao lado que é evidentemente um símbolo fálico. (E eu que ainda não reparara nisto nem no resto… que incultura sexual!) E desafiou os poetas de Vila Franca a fazerem poesia inspirados nesse tema. Mas, melhor que esta explicação, será consultar o texto do próprio, no endereço que vai abaixo.

http://www.dightonrock.com/ocolondavilafancadocampo.htm

Ilhéu da Vila

Uma erótica vulva de basalto,
Redonda, bem formada, como um halo.
Contempla-a, sombrio, um negro falo
Que a seu lado se vê bem posto ao alto.

Que angústias viverá em sobressalto!
O erecto, viril membro, é como um galo
Com franga que não pode consolá-lo
Porque ele não consegue dar o salto.

Imutáveis estão, e assim se fitam:
Ela ardendo em desejo, ele cismando.
(Quantos seres humanos os imitam!)

Para não desejá-la, o pobre rijo
Enquanto a olha vai imaginando
Que o mar à sua volta é todo mijo.

Superstições

Devido a circunstâncias laborais, tenho conhecido muitos espanhóis. Os espanhóis são, dizem-me eles, muito supersticiosos. Já conheci uma boa dezena de casos que ficam histéricos com gatos pretos, espelhos e coisas afins. Há um hábito em particular a que eu acho piada, que é o de colocar alhos em locais estratégicos. O pai de um amigo punha-lhe alhos no porta luvas do carro para o livrar de acidentes e maus encontros. Também lhe adiou bastante a saída de casa, já que a moça de quem ele gostava na altura achava que ele andava sempre a cheirar a comida e que arrotava no carro, o guarro. Também conheci um cientista que usa as mesmas técnicas, e coloca alhos junto a locais estratégicos do seu laboratório, particularmente quando acha que as experiencias lhe correm mal e quer que lhe comecem a correr bem. Esta história deu-me uma particular vontade de rir, ao imaginar artigos na Nature descrevendo, entre os mais diversos aparelhos de cromatografias, espectrofotometrias, ressonâncias e infravermelhos, a presença de uma cabeça de alho de cerca de 100 g, colheita de 2007, Junho.

No entanto, e como me fez notar uma amiga, qual será a diferença entre um cientista que coloca alhos ao pé dos aparelhos, e um cientista que reza e pede a deus que o ajude?

Sonho de mulher na cidade de cimento

Teu corpo é uma planície pequenina
Onde eu sou um lavrador à procura
De fazer com a língua na tua vagina
Sementeiras de paixão e de ternura

Faço dos meus lábios uma charrua
Bem levada pela força dum tractor
E à noite quando vem a luz da Lua
Teu corpo é uma seara só de amor

Na tua boca-vulcão sugas o lume
Aceso na pele dos meus sentidos
Enlouqueço a pensar no perfume
Nos dias longe de ti tão perdidos

A tua boca é uma oitava maravilha
Pois concentra como em ninguém
A força impetuosa de uma filha
E a serena sabedoria de uma mãe

Continuar a lerSonho de mulher na cidade de cimento

Fitna – II

O nosso amigo Carmo da Rosa pregou uma inteligente, e clássica, partida a propósito da publicação do vídeo Fitna. Os resultados estão à disposição dos interessados; e valem, para mim e principalmente, por esta evidência: o problema do terrorismo islamita, mais as melindrosas e desvairadas questões conexas, não se resolve com o silêncio das vítimas, muito menos com silenciamentos. O facto de ser uma ameaça potenciadora, ou geradora, de desequilíbrios psíquicos (vide exemplo nos comentários), e de posições confusas (vide exemplo nos comentários), e de contradições obscenas (vide exemplo nos comentários), mais urgente e meritório torna o diálogo com os apavorados, os medrosos e os preconceituosos. Até com os imbecis.

E o Fitna? As centenas de milhões de crentes muçulmanos não pareceram muito preocupadas com as peculiaridades da política holandesa, e as manifestações foram raras e sem entusiasmo. A reacção mais violenta, e ironia das ironias, ainda é a de Kurt Westergaard, o qual protestou por aparecer o seu famoso boneco à má-fila, sem o terem sequer avisado. Para os distraídos, fica claro quais são os limites da liberdade de expressão: os direitos de autor. Qualquer outro limite, e excluindo a legislação aplicável, é inadmissível e deve ser denunciado como ofensa à Civilização.

Por cá, jornalistas e blogues preferiram ignorar a surpreendente peça de Geert Wilders. Não me pagam para explicar o fenómeno, mas como observador aponto para um aspecto notável do Fitna: em nenhum passo se promove a violência contra pessoas, etnias ou credos. Aliás, desconfio que o registo baralhou por completo os axónios a muito boa gente, contribuindo para explicar a mudez geral. O que fica da narrativa é uma comunhão com o sentimento de perplexidade perante a aberração de actos e intenções. A mensagem poderia — e deveria! — ter vindo de um crente islâmico, pois o mal faz vítimas entre todos os que procuram viver em paz.

Entretanto, um palonço saudita, de seu nome Raed Al Saeed, deu que falar com o vídeo Schism. O filme é completamente idiota, risível de tão tonto, mas assinala a possibilidade de diálogo com a nova geração de muçulmanos cosmopolitas. Basta que eles consigam entender que a religião cristã já foi derrotada faz tempo, muito tempo. O cristianismo não passou de um momento da cultura ocidental, o que veio a seguir é uma divindade muito mais poderosa: a liberdade.

luxuriante

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No momento em que todos se roem porque não irão ver o filme do último sopro de Marylin, diverte-me o estatuto atingido pela pornografia. Retirada dos confins de cotão entre colchão e estrado de machos com muito a esconder, a exposição dos genitais passou ao trívio da trivialidade. Do hábito saudável de damas que ostensivamente não usam cuecas, por um bom arejamento (já dizia a minha madrinha que as pombinhas deviam andar ao léu sempre que possível), ao atestado de vulgaridade de herdeiras milionárias, o leitmotif do sexo está em tudo, especialmente na arte.
A artificação do sexo rebate o conceito de pornografia, como os orientais provaramalguns séculos. John Currin, capa da última Art Review,* mete no chinelo qualquer prosápia de um Jeff Koons na dessacralização do sexo. Pegando em clássicos da arte ocidental, e com evidente referência à sofisticação dos enquadramentos das gravuras orientais, Currin* seduziu o mercado com uma pintura opulenta de temas eróticos. O sexo vende e, no caso, a preços de seis algarismos. Quando há quem compare um felácio com um beijo com muita língua em números desta envergadura, e os nivele, já não podemos estar a falar de pornografia: o objecto perde relevância para o modo como é representado. Todavia é feito o aproveitamento da experiência comum da pornografia, a da atracção pelo voyeurismo. Aqui, sátira executada com rigor kitsch biedermeier.
Currin recicla o imaginário da idade de ouro da pintura figurativa, recorrendo à época dourada da pornografia, os anos 70, altura em que ainda deixavam pessoas feias, ou de aparência normal, fazerem-no. Nesta dupla apropriação, Currin mostra que sabe pintar, embora o recurso ao suporte fotográfico possa explicar eventuais dificuldades no escorço, aqui e além. Representa a textura da carne e embutidos de composição, como panejamentos e detalhes de natureza-morta, com mestria conservadora. Apesar do apelo das vanguardas e da suposta morte da pintura, o virtuosismo tende à legitimação pública.
Há, no entanto, um problema constante com a exibição do sexo. Pouco importando quão abertos possamos ser em relação à causa e suas causas, ao grau artístico da cena e seu carácter majestático, prevalece um mas. Um pudor relacional, resguardo que Currin explicita. Lamenta ter que proibir os filhos de entrarem no seu estúdio, e não poder discutir o trabalho apresentado com os pais, no clima apoteótico que inaugura as suas exposições. Mas o embaraço não o tolhe. E as imagens são uma delícia de dolce vita. Mesmo se não atingem a modernidade que encontrei em Lequeu. Descoberto aqui, em plena Aspirina.

*Links obtidos por cortesia da comentadora Marcel Duchamp.

purpurinas científicas

Uma senhora foi à escola falar sobre ciência. A Ciência Brilhante, contou-me o meu filho, valeu bem os dois euros que paguei, porque aprenderam muitas coisas. Aprenderam, por exemplo, que não é a poluição o que destrói a camada do outono; antes torna-a mais espessa. E depois é mau, porque a luz do sol vem e dobra para ali. Mas também não se sabe tudo sobre a camada do outono, porque ela não se vê. Parece que só se consegue ver por dentro a partir de um foguetão. O pior é se o foguetão acerta num sítio onde ela está muito grossa e forte, e faz barreira invisível e tau, o foguetão bate e cai para trás. O foguetão, filho, o foguetão não passa?! Ai, não ligues, pois, os aviões é que não conseguem passar, não é?
Conheço uma criança da idade do meu pequeno cuja mãe tinha um excelente método. O miúdo tinha dois anos e fazia muitas perguntas. Ela respondia o que é que achas que é? ou não sei, diz-me tu porquê. E ele congeminava qualquer coisa, quase sempre efabulações com sentido lógico.
Uma das coisas boas da aprendizagem é tudo ser ainda possível. Aviões a embater nas camadas do outono e a fazerem ricochete. Ou a descoberta de um intestino doce e outro salgado, pela filha de uma amiga. Do filho de outra chegou-me a poesia da água com gás, num sabor a pés dormentes. Quando lhes falta, completam os espaços em branco. A imaginação permite atribuição de sentido e, nela, o encontro de metáforas. A minha mãe sempre me disse, e com toda a razão: filha, quando não souberes, não fiques calada. Inventa.

A sombra luminosa

Poemas: Marta Furtado (jovem poetisa natural da Ribeira Grande, publicação póstuma) e R. Tagore;
Título e outras citações: Armindo Trevisan (teólogo brasileiro);
O texto restante é meu.
“Num campo de Nada
os olhos minúsculos de uma besta
enredada no escuro
tremem de medo dentro do corpo
enorme colossa.l”
Um campo de nada que poderia ser de tudo. O vaso vazio é mais fácil de encher se for pequeno, mas se a alma humana é grande, imensa, nada a saciará nunca. Como um
“Minotauro embevecido,
(que) consigo
ao espelho, no dia em que se viu
tornou-se frágil narciso
e perdeu o sentido.”
O espelho, a luz-sombra do eu inquieto a que só a perfeição basta. Mas não pode partir-se o espelho. Nem obrigar o espírito às limitações do reflexo. Talvez num qualquer Nirvana. Talvez Rabindranath, o sublime, capaz de o sentir quando disse
“Mesmo que eu tivesse o céu
com todas as suas estrelas
e a terra com os seus tesouros sem fim,
eu pediria mais.
Se ela fosse minha, porém,
qualquer cantinho neste mundo me bastaria.”
A poesia é uma das formas primordiais do Belo. A comunicação por excelência das ideias imperecíveis. O próprio Cristo a terá usado, seguindo a tradição do seu povo habituado a guardar a sabedoria onde não poderia perder-se: na memória colectiva.
“Existe nos Evangelhos uma dimensão poética essencial”
mas o próprio
“Jesus não encontrou uma página em branco que devesse ser inaugurada; a página já estava escrita.”
O que é preciso é mudar as formas, se necessário acrisolá-las até, para as adaptar às exigências de quem ouve, ainda que sejam apenas um solilóquio. Ainda que, se fossem cores, tivessem de ser feitas de todas as cores para conterem todas as ideias. Porque “o poeta, por definição, é alguém que deixa em aberto suas palavras, fugindo às definições.”
O poeta é alguém que é maior do que a sua própria vida, como se não coubesse nela e tivesse de criar um espaço de poesia que acolhesse a sua liberdade condicionada. Um pequeno mar onde possam desaguar os seus sentimentos, porque “só a poesia resguarda aquela área em que o sentido pode ficar /…/ fecundo, engendrando novos sentidos.”
Muitas vezes, quase sempre mesmo, a inquietação que aflige o poeta não é a sua própria, mas a dos outros.
“O suor dos escravos
ou a seiva dos algodoeiros
entranhados na Terra?”
Esta é uma forma excelsa de sabedoria: a consciência de que o mundo somos nós todos, de que não há lugares de privilégio previamente reservados.
“É a primeira vez que venho ao mundo
daí que não saiba nem sinta absolutamente nada.”
Mas a forma suprema da sabedoria é o amor. Que não se aprende, faz parte da vida. Quem o nega não renuncia aos outros, renuncia a si mesmo.
“A Humanidade
ou está numa mata de ouro
ou num matadouro
conforme convém à loucura.”
Para isto é preciso um corpo com todos os seus sentidos, pois estes é que são as portas da alma.
“Que farei eu só com a minha alma?”
Estes poemas da Marta, como os de Michel Quoist, são para rezar. Por isso, contrariando a lógica, mais que a resposta dada à pergunta feita
“Nada “
pode dizer-se, sem receio de errar: Tudo.

O livro da minha vida – Dia Mundial do Livro

«Uma abelha na chuva» de Carlos de Oliveira

Ler «Uma abelha na chuva» em 1969 numa Lisboa temerosa, vagarosa e desenhada a preto-e-branco foi, para mim, a descoberta de um escritor e de um mundo. Carlos de Oliveira escrevia romances como quem escrevia poemas, sem excessos palavrosos, com uma carpintaria essencial. As personagens movem-se na Gândara, a região onde o autor viveu a sua meninice: «terra areenta, infértil, dunas, lagoas pantanosas, pinhais, casas de adobe». As duas figuras-chave do livro continuam ainda hoje para mim inesquecíveis – Maria dos Prazeres e Álvaro Silvestre. E o conflito entre a aristocracia decadente e a burguesia em ascensão: amor e desprezo, ciúme e prazer, ódio e ternura. Notável é neste livro de 1953 como o autor pressente (mais de vinte anos antes…) o regresso dos «retornados» e os seus conflitos pessoais e sociais. Eu tinha dezoito anos e a minha paixão pela literatura nascera no Ciclo Preparatório em Vila Franca de Xira com os poemas de Cesário Verde e com os contos de D. João da Câmara e de José Loureiro Botas. O primeiro dava-me o Mundo, o segundo dava-me a Cidade, o terceiro dava-me o Campo no Inverno e a Praia no Verão. Mais tarde as fotografias de Augusto Cabrita e o filme de Fernando Lopes com Laura Soveral e João Guedes nos principais papéis vieram dar outra visibilidade ao livro em cujas páginas a morte duma abelha pode ser também a metáfora da morte dum certo tempo português. E este romance é a perfeita memória descritiva dessa mesma morte. Porque tudo aqui funciona em harmonia, o tempo interior das personagens, seus sonhos e angústias, mistura-se de forma feliz, acertada e completa com o tempo geográfico, uma aldeia perto das lagoas pantanosas mas a dois passos do mar onde as ondas das marés vivas levarão de noite o corpo do cocheiro assassinado. «Uma abelha na chuva» é um excelente ponto de partida para alguém descobrir o autor de uma das mais importantes obras de poesia e romance do século XX. Ainda me lembro, tantos anos depois, das últimas palavras do romance depois de alguém num grupo de mulheres chamar o Dr. Neto porque a Clara em desespero se tinha atirado ao poço da olaria: «A abelha foi apanhada pela chuva: vergastadas, impulsos, fios do aguaceiro a enredá-la, golpes de vento a ferirem-lhe o voo. Deu com as asas em terra e uma bátega mais forte espezinhou-a. Arrastou-se no saibro, debateu-se ainda, mas a voragem acabou por levá-la com as folhas mortas.»
Nota final – Só o facto de pensar que estas palavras possam vir a ser traduzidas para brasilês deixa-me, desde já, arrepiado.

No Nordeste, em S. Miguel

Naquele tempo, o Nordeste ainda era longe. Dentro do concelho a viagem fazia-se numa estrada de que, em dias secos, se erguia um pó amarelado, finíssimo, constante. Nada nem ninguém se movia nela sem assinalar a passagem com nuvens de poeira. Que persistiam, insidiosas, se não havia uma aragem que as desfizesse sobre as searas, contra as casas, nos vales e nos outeiros.
Pela primeira vez o viajante foi além da Vila. Passou a Lomba da Pedreira, presépio armado durante todo o ano. Ficava para outro dia percorrer as suas ruas como pastor em Belém. E, de súbito, poucos quilómetros adiante, a mais inesperada das surpresas. A estrada alargava-se e era de asfalto. Haviam ficado para trás os barrocais das míticas ribeiras do Nordeste – a da Mulher, a Despe-te Que Suas, a do Guilherme… Perdidas, nas milhentas curvas do caminho e da paisagem, as tremendas arribas da Achada, das Feteiras, da Algarvia… Por aquelas bandas a ilha é sempre com mar ao fundo, mas apenas a servir de moldura, longe, como se a ilha e o mar nada tivessem que ver entre si. Como se vivessem desavindos e só por acaso e a contragosto se tocassem na orla das escarpas.
Da estrada de asfalto o viajante não sabe o prodígio que a deitou ali, no mais improvável dos lugares, porque não se vê vivalma que a use ou ao menos lhe ponha a vista em cima. Mas ela continua a revelar um mundo cada vez mais estranho e mais fascinante. Ali, onde a ilha começou a ser feita há mais de quatro milhões de anos, tudo acontece à semelhança do final de um poema sinfónico, em que o tema se repita no ribombar de toda a orquestra. A cada curva passada o viajante olha à procura da diferença. E esta surge-lhe, mais que todas, no espanto de uma ribeira que, como as outras, desce dos lados onde o Pico da Vara galga o céu.
O viajante pára. Alguém dos que o acompanham disse: “Ninguém fale.” Mas não era preciso. O único que se atreveu a falar foi aquele que pediu silêncio.
Não sabe o nome da ribeira que contempla, extasiado. Apenas percebe que ela desce a montanha como se tivesse pressa de fugir das alturas da Tronqueira. Depois acalma um pouco, e a falha geológica que aproveita para deitar-se ao mar alarga-se sem poupar espaço. As margens, até ao leito que se não vislumbra, estão adornadas com quase todas as espécies de árvores que há na ilha. A completar o espectáculo, o canto de milhares de pássaros. Nem um se avista. Nem de um sequer se distingue a voz, que assim de longe ecoam todas em uníssono.
Depois há-se saber que aquela ribeira é a dos Caimbos, porque, ao atravessá-la, os primeiros que por ali andaram usavam uns ganchos para se agarrarem às margens quando as subiam. Quanto à estrada que primeiro o surpreendeu, dizem-lhe que foi obra dos Serviços Florestais, que fizeram no Nordeste talvez os melhores actos de amor à Natureza de todas estas ilhas. (E naquele pico de onde a ribeira desce, o do Bartolomeu, que seria morada digna de duendes, há-de fazer-se um miradouro de conto de fadas.)
O viajante esquece a beleza triste dos povoados por que passou até chegar ali. Tinham todos a cor dos dias cinzentos do Inverno. Como se nunca houvesse sol durante o dia nem luar nas longas noites. Mas ama-os, na sua velha modéstia, deleita-se no contraste da sua pequenez com a imensidão do cenário. E tem confiança de que tudo há-de mudar. Só não imagina que será tanto e tão depressa. O que aquela gente sofre por estar viva! Há em todos, no entanto, uma delicadeza natural, uma boa educação que lhes anda agarrada à alma como os incensos e as conteiras nas ravinas mais inacessíveis.