Pouquíssimos o saberiam então e talvez já ninguém o saiba hoje: Salazar tinha uma vidente, que consultava espaçadamente. Não acreditava nela, tal como não acreditava na Lúcia de Fátima, mas não resistia a recorrer aos serviços de ambas quando, em momentos torturantes de incerteza, tinha de agarrar-se a qualquer coisa. De facto, Madame Virginie (era este o nome de guerra da extralúcida senhora) já havia tranquilizado o chefe do governo em várias ocasiões, como quando previra que Américo Tomás ganharia facilmente as eleições presidenciais de 1958. Madame Virginie era uma transmontana que andara por Paris e pelo Brasil até estabelecer um discreto gabinete de consultas num quarto andar da baixa lisboeta. Claro que ela se valia muito, para os seus vaticínios, da mera intuição adestrada pelos desenganos da vida, quando não recorria às dicas de certos informadores bem colocados, porque uma pitonisa também tem de pensar na sua reforma. Mas às vezes saíam-lhe coisas do fundo da mente que a surpreendiam a si própria.
Numa manhã de Janeiro de 1965, o ditador acordou angustiado. A caminho dos 76 anos, que ia completar em Abril, o seu sono era ultimamente perturbado por pesadelos que o faziam acordar banhado em suores frios. Pensar no futuro do país após a sua morte era uma ansiedade recorrente, mesmo de dia. Ultrapassados os abanões que o regime tinha levado nos primeiros anos dessa década, Salazar já não temia seriamente ser derrubado até ao fim do seu consulado. Morreria, previsivelmente, ao leme da nação, pois não havia dentro do regime quem ousasse correr com ele e a PIDE mantinha-o permanentemente informado sobre os mínimos passos da inepta oposição. Mas, depois da sua morte, que rumo tomaria Portugal? Iria por água baixo toda a sua obra, construída com tanto sacrifício? Sentia terríveis calafrios só de pensar que um seu sucessor, num momento de moleza ideológica, poderia abrir as portas aos partidos, acabar com a censura ou entabular negociações com os terroristas africanos ao serviço de Moscovo.
Naquela dita manhã, depois de um pequeno-almoço que lhe custou a engolir, o ditador convocou Madame Virginie para S. Bento. A vidente chegou por volta das dez e meia, sentou-se numa cadeira de braços em frente do governante e, depois de se interessar protocolarmente pela saúde e estado anímico do seu valioso cliente, perguntou:
‒ Ora então, senhor presidente, o que é que o atormenta?
‒ O futuro, minha senhora. O futuro!
‒ A todos nos preocupa, senhor presidente. E ainda bem, porque é disso que eu vivo – tentou gracejar a vidente.
‒ Queria que me dissesse como estará Portugal daqui a cinquenta anos – atalhou, sem sorrir, o ditador. – Fale-me do estado do país daqui a meio século.
‒ Ora, cinquenta anos, cinquenta anos… em 2015, não é, senhor presidente? – indagou a vidente, só para confirmar o sentido da pergunta.
‒ Exactamente – disse Salazar, após um rápido exercício mental.
Madame Virginie cerrou os olhos e, apoiando os cotovelos nos braços da cadeira, encostou as pontas dos dedos às suas fontes grisalhas. Ouviu-se um eléctrico a subir ronceiramente a Calçada da Estrela, depois o silvo agoirento de um melro no jardim da residência de S. Bento. Seguiu-se um silêncio prolongado dentro e fora da sala. A vidente curvou-se um pouco para a frente e dali a segundos as mãos começaram a tremer-lhe ligeiramente. O ditador, paralisado pela expectativa, tinha o olhar preso no crânio da vidente. Subitamente, sem abrir os olhos nem elevar a cabeça, Madame Virginie começou a murmurar baixinho qualquer coisa de imperceptível. Salazar inclinou-se um pouco sobre a secretária para a ouvir melhor. E, apontando o ouvindo, percebeu distintamente estas palavras:
‒ Lisboa tem um presidente da Câmara socialista.
Salazar deixou cair o queixo. Curvado, de boca aberta e sem conseguir sequer pestanejar, prestou-se rendidamente a ouvir o resto, que rezava assim:
‒ A Câmara de Lisboa vai dar o nome de Humberto Delgado ao Aeroporto da Portela.
Estas palavras terríveis fulminaram o ditador. Engoliu em seco, a mão direita tremeu-lhe sobre a mesa. Passaram-se lentos e torturantes instantes. A vidente, sempre imobilizada na posição curvada, não dizia mais nada. Parecia esgotada a sua ligação ao além. Rapidamente, Salazar assimilou em toda a extensão o significado brutal da profecia de Madame Virginie. A estupefacção inicial deu gradualmente lugar ao nervosismo e, logo depois, a um sentimento de revolta. Quem era aquela mulher para ousar vir ali trazer-lhe tão calamitosos presságios? Ter-se-ia ela esquecido da sua missão tranquilizadora? Não era para isso que lhe pagava? Interrompendo a sessão, o ditador levantou-se e despediu agrestemente a vidente. Esta, assustada pelo efeito da sua predição, começou a desfazer-se em pedidos de desculpa, mas Salazar acompanhou-a expeditamente até à porta.
Voltando à sua secretária, Salazar cruzou os braços e olhou fixamente um ponto na parede, entre um quadro de Martins Barata representando a tomada de Lisboa aos mouros e a imagem emoldurada de Nossa Senhora de Fátima que o cardeal Cerejeira lhe oferecera para o seu gabinete. Pareceu-lhe surgir, naquele incerto ponto da parede, o retrato de Humberto Delgado de bigode postiço e óculos escuros feito em 1962, quando o general andou doze dias clandestino por Portugal, uma foto depois divulgada internacionalmente. Incomodado com tal visão, Salazar premiu um botão branco à sua direita sobre a mesa. Uma funcionária apareceu, prestimosamente, à porta do gabinete contíguo.
‒ Mande-me vir cá imediatamente o Rosa Casaco – disse secamente o ditador.
‒ Sim, senhor presidente – respondeu a funcionária, curvando a cerviz e abalando para cumprir a ordem.
Salazar suspirou, arrumou um dossier sobre a sua secretária e disse baixinho para com os seus botões:
‒ Aeroporto Humberto Delgado! Espera lá que já trato de ti…
Deliciosa evocação do Botas e seus medos mesquinhos. Tão parecidos lhe sairam os herdeiros actuais!!! O ditador era dado assim a umas coisas sem explicação. Por exemplo: durante largo tempo, ia uma vez por semana visitar Miss Rose, uma inglesa que vivia num lar de Doroteias na Av. Fontes Pereira de Melo. Viveram ali, durante os seus estudos universitários, dezenas de raparigas das colónias. Grande era o assombro das cachopas quando encontravam Salazar na escada. Algumas delas aproveitaram o facto para obterem dos pais, todos eles entusiastas de Delgado, autorização para mudarem de casa.
Impecável. E, simultaneamente, hilariante e triste.
Muito bom. Se lhe contassem a história do monstro de boliqueime talvez o botas não desse o trabalho todo por mal feito.
Tenho tambem uma história muito gira do Dr. Salazar (a quem admiro profundamente):
Ele tinha duas caixas de cigarros sobre a secretaria de trabalho. Certo dia um amigo, em vizita pessoal, ao ser deixado por curtos minutos a sós no gabinete de Salazar retirou um cigarro, dada a intimodade que tinham, de uma das caixas. Ao entrar no gabinete Salazar perguntou logo de que caixa tinha tirado o tabaco. O amigo perguntos porque, qual era a diferença. Ele respondeu (em palavras que já não recordo) que uma caixa era para as vizitas oficiais a outra era pessoal…
Neste pequeno acto demonstra bem o caracter sério que este político tinha. Um sério exemplo. :)
VW
Ó anonima, se se tratava de um amigo íntimo e, portanto um caso nada oficial e muito pessoal, onde está evidenciado o carácter sério de salazar?
O que está retratado nesse episódio é, precisamente, a avarenta mesquinhez e a obsessão doentia de medo que nem nos amigos íntimos confiava.
Vê-se logo, com tal interpretação, que tal admiração se fundamenta numa profunda ignorância.
oh volkswagen, gostei muito dessa estória do botas. já não me ria tanto desde que o cegueta apareceu aqui a escrever em mindricalho. cá em casa tamém somos bué de sérios, temos 2 torneiras no bidé, uma para água quente e outra para fria, nada de misturadoras.
faz amanhã 50 anos que a pide matou o delgado. bem lembrado.
SALAZAr, ganda homem, ganda istadista, à altura do marqueze de pumbale, pá. falai, pois, ó cambadas democráticas populistas do nada barulhentu, calai-bos, purque tendeis o que meresseis, a savere: o 44 na priza, o vara na priza, o cabaco comu presidente, arrotandu cabacas mal paridas, o cuelho a ispumarre critérios pra noba mentira, o portas a bere onde pode atacare, e mais uns quantus cum suorres frius cum medo cu Alexandre lhes ponha a pata in cima. fogu ó isaltinu, já cu reie num save bem o que fazerre, purque num abanssas tue? oqueie.
É justo que o aeroporto da Portela leve o nome de uma das figuras mais proeminentes do Estado Novo e que muito contribuiu para a aviação portuguesa.
Figuras como Delgado, Duarte Pacheco, Veiga Simão, Tenreiro, Craveiro Lopes, Engº José Canto Moniz, prof. José Hermano Saraiva, Franco Nogueira…,enfim, muitos que nos legaram um país que em 1926 parecia irrecuperável, toda uma geração de Portugueses que deve ficar na história de Portugal, como gente extraordinária.
E para quando um Panteão em Santa Comba?
um caso de riso e de choro evidente. :-)
Gente Extraordinária foi o Povo Português que, na miséria, aguentou uma ditadura durante 48 anos.
alguém ouviu o sindicato dos magistrados dizer alguma coisa sobre o “blogue dos magistrados” onde insultam o sócras?
http://www.sabado.pt/portugal/seguranca/detalhe/admira_me_nao_terem_descoberto_que_ele_matou_o_rei_d_carlos.html
Ignatz, vamos esperar sentados ou que o ceguetas venha para aqui dizer umas barbaridades
JOSÉ NEVES e IGNORANTZ, a seriedade de Salazar estava no simples facto de este pagar do bolso dele os cigarros para as vizitas pessoais e as vizitas de estado eram pagas pelo estado. Chamar a isto mesquihes é anedotico, proprio de pessoas sem carácter.
É claro que agora todos nós pagamos tudo. A diferença está aí e ninguem diz nada. :(
VW
oh analfa, essa parte já tinha percebido, mas continuo a não saber o que são “vizitas”. tamém não disse que era “mesquilhes”, parece-me mais folclore de santa comba para delírio de salóios.
“vizitas”, VWhat?!…
oh Júlio, que delícia de texto! oportuno, como sempre.
Ó anónima VW, então o Botas recebia viZitas pessoais no seu gabinete de trabalho? Muito me contas. Não sei quanto é que ele ganhava à hora, mas um encontro pessoal à custa do horário de trabalho, pago pelos contribuintes, representaria certamente o preço de duas ou três dúzias de maços de tabaco.
se calhar era a vizita seabra por causa dum licenciamento em óbidos.
éllou, élou. Ó Jp Ferra, a esta ora pá, debes istare cum calus no ravo, hum? fogu, debes tameie tare cançadu discraberres pra ti propriu, num é?oube, keres falare do tal vlogue? Hum? tenze linha direecccta cum o 44?oqueie.dize-lhe açim: o numbejonada dize para tue e os teus acólitus tarem calados, e o teu adbogadu taméie.ele feze muitu male em tere faladu do vlogue, purque içu é maise uma perturvaçãoe do inquérritu.o gaju tá vrincare cum a tua liverdade, inquantu andarre a pavuniarre a baidade, num baise saíre da priza. baies ficarre incarceradu até ao julgamentu. içu tá garantidu. num adianta dizerre cu juíze alexandere num teie nada que bere cum o vlogue. até puqre num é elle que baie fazere o julgamentu.portantu, agora baos ficare aíe ate isgotar os prazus pró termu do imquerritu, tá beie? dize-lhe tameie pra mudare dadibugadu. oqueie.
Prassevestes, ó calimerro? querres ca repita? oube, a gente savemus qués vipolare, mas eue tenhu moita passienssia. comprimentus.