O homem do saltério na estação do Campo Grande
A cidade tem armadilhas de ternura, emboscadas de encontros felizes, confusões que se desfazem devagar e nos ajudam todos os dias a dar um sentido ao tempo de viver aqui. Na estação do Campo Grande saía eu da carruagem da linha verde e procurava a linha amarela quando no espaço da plataforma fui surpreendido por um som insólito mas muito agradável. Não é todos os dias que se ouve um saltério.
O músico tocava o «My way» de Frank Sinatra, um génio que nasceu destinado a uma vida pobre, filho de um italiano empregado de um bar e pugilista em part time com um nome de guerra irlandês e de uma parteira que, também em part time, fazia uns abortos para arredondar o fim do mês.
O homem do saltério não conhecia o filme «O terceiro homem» nem a partitura de Anton Karas nem o livro de Graham Green nem a imagem de Joseph Cotten a fugir dos maus nos enormes esgotos de Viena. No fim os bons ganham. Nos filmes, ao contrário da vida real, os bons ganham sempre.
Ele, o desconhecido que interrompeu a minha deambulação na plataforma do Metro, continua a fazer voar o plectro, a pequena vara de madeira, por sobre as cordas do saltério. Eu não poderia desejar melhor motivo: um desconhecido vindo lá dos confins da Hungria ou talvez da Roménia toca com afinco, prazer e devoção uma música americana cujo titulo «My way» pode ser traduzido por «meu caminho». O meu e nosso caminho é, só pode ser, estarmos todos juntos na crónica, na Rádio, no Natal de 2009 e no mundo novo que este nosso Natal anuncia.
também gosto muito de ser surpreendido nas ruas da cidade pelos sons que fazem a diferença, pela novidade e pela forma inesperada que nos surgem…
fiquei com vontade de ouvir o sinatra.
Mas olha que só agora descobri (ao ler uma biografia) que a mãe do Sinatra era abortadeira nas horas vagas e qeu o pai era pugilista em «part time». Ela chegou a ir a Tribunal várias vezes. O livro foi comprado para oferecer em nome do meu neto a um amigo de velha data que por sua vez lhe ofereceu por graça um velho livro da segunda classe do nosso tempo…
A ‘musica americana’ e, de facto, francesa, ou la dessas bandas, mas, comme d’habitude, a sua enciplopedia de pugilismo e abortadeiras nao gasta disso. As coisas que um homem aprende aos 60 anos.