«Uma abelha na chuva» de Carlos de Oliveira
Ler «Uma abelha na chuva» em 1969 numa Lisboa temerosa, vagarosa e desenhada a preto-e-branco foi, para mim, a descoberta de um escritor e de um mundo. Carlos de Oliveira escrevia romances como quem escrevia poemas, sem excessos palavrosos, com uma carpintaria essencial. As personagens movem-se na Gândara, a região onde o autor viveu a sua meninice: «terra areenta, infértil, dunas, lagoas pantanosas, pinhais, casas de adobe». As duas figuras-chave do livro continuam ainda hoje para mim inesquecíveis – Maria dos Prazeres e Álvaro Silvestre. E o conflito entre a aristocracia decadente e a burguesia em ascensão: amor e desprezo, ciúme e prazer, ódio e ternura. Notável é neste livro de 1953 como o autor pressente (mais de vinte anos antes…) o regresso dos «retornados» e os seus conflitos pessoais e sociais. Eu tinha dezoito anos e a minha paixão pela literatura nascera no Ciclo Preparatório em Vila Franca de Xira com os poemas de Cesário Verde e com os contos de D. João da Câmara e de José Loureiro Botas. O primeiro dava-me o Mundo, o segundo dava-me a Cidade, o terceiro dava-me o Campo no Inverno e a Praia no Verão. Mais tarde as fotografias de Augusto Cabrita e o filme de Fernando Lopes com Laura Soveral e João Guedes nos principais papéis vieram dar outra visibilidade ao livro em cujas páginas a morte duma abelha pode ser também a metáfora da morte dum certo tempo português. E este romance é a perfeita memória descritiva dessa mesma morte. Porque tudo aqui funciona em harmonia, o tempo interior das personagens, seus sonhos e angústias, mistura-se de forma feliz, acertada e completa com o tempo geográfico, uma aldeia perto das lagoas pantanosas mas a dois passos do mar onde as ondas das marés vivas levarão de noite o corpo do cocheiro assassinado. «Uma abelha na chuva» é um excelente ponto de partida para alguém descobrir o autor de uma das mais importantes obras de poesia e romance do século XX. Ainda me lembro, tantos anos depois, das últimas palavras do romance depois de alguém num grupo de mulheres chamar o Dr. Neto porque a Clara em desespero se tinha atirado ao poço da olaria: «A abelha foi apanhada pela chuva: vergastadas, impulsos, fios do aguaceiro a enredá-la, golpes de vento a ferirem-lhe o voo. Deu com as asas em terra e uma bátega mais forte espezinhou-a. Arrastou-se no saibro, debateu-se ainda, mas a voragem acabou por levá-la com as folhas mortas.»
Nota final – Só o facto de pensar que estas palavras possam vir a ser traduzidas para brasilês deixa-me, desde já, arrepiado.
José do Carmo, custa-me a crer que este post ainda não tenha um comentário. Agradeço-te do fundo do coração essa tua referência à obra “Uma Abelha na Chuva” de Carlos de Oliveira. É certamente das coisas mais belas que li até agora. Chegaste a ver o filme, baseado no romance, de Fernando Lopes?
Estive há bocado a beber uma bica ao lado da Paula Guedes, filha do grande actor João Guedes («Não há brandy nesta casa?») e conheci a grande actriz Laura Soveral ao balcão do BPA. O mundo é muito pequeno, vi o filme gostei muito mas há uma edição do livro que tem ainda outro aspecto. Fotos do Augusto Cabrita. Aquilo é tudo Cantanhede, Febres, aldeias perdidas com «casas na duna». Ando à procura de uma edição de OS PESCADORES de Raul Brandão com prefácio do Cardoso Pires que fala dessa relação dos livros do Carlos de Oliveira com o espaço da Gândara.
Lá tinhas tu que meter a tua ponta de vaidade. Eram boas as gajas ao menos?
Calma Claudia não exageres, não chames vaidade a uma simples enumeração. Na mesma esplanada sentam-se pessoas como o cineasta João Botelho e o actor Miguel Guilherme, também se junta o ex-director do DN Mário Resendes, juntava-se o poeta Eduardo Guerra Carneiro, autor de «Isto anda tudo ligado». Não há ponta de vaidade, trata-se apenas de circunstância – morar perto do Principe Real e ir lá beber a bica. Apenas isso.
Não há ponta de vaidade, trata-se apenas de circunstância – morar perto do Principe Real e ir lá beber a bica. Apenas isso.
LOLOLOL
Todos nós moramos à beira de um príncipe real e de um cocheiro de serviço.
pois eu só vim cá dizer que bem podes ficar ‘arrepiado’ com a edição em língua portuguesa no Brasil. Eles é que são, hoje, o orgulho da lusofonia. E meu.
Viva o povo brasileiro! (e não só pelo título do Ubaldão).
Comungo do arrepio do Val, definitivamente!
abelhas e andorinhas têm muito em comum.:-)
(mas eu, aviso-te já, não aprecio, realmente, bicadas ao cheiro de personalidfades reais. opto sempre pela geleia – real. (cai na real, cara?). :-D
«Manutor» olha que não é o «Val» é o «z» – e isto de arrepiados cada qual toma o que quer é como a água benta. Eu não é por ter sido convidado da Bienal do Livro do Ceará e de ter uma antologia publicada numa editora de São Paulo que vou deixar de pensar pela minha cabeça. Isto do acordo ortográfico é como diz Millor Fernandes uma merda e cheira tão mal que foi preciso atirar uma ministra pela borda fora. SE eles não cumpriram o acordo de 1945 porquê cumprir este??? Então mudem o nome de portugues para pataxó.
mas exactamente o acordo existe para a linguagem jurídica porque aí não deve haver ambiguidade, e na científica pouco também, tirando isso não há mais criativos de português do que os brasileiros, e sempre respeitaram e respeitam as nossa letras. Aliás já me aconteceu várias vezes ler textos académicos que pensava serem de autores portugueses e eram de brasileiros. Isso de chamar pataxó depreciativamente está mal.
Nada tenho contra os pataxó – mas posso reivindicar alguma liberdade no uso do meu portugues. Portugues – pataxó é um jogo de palavras. A minha voz é muito fraca e nada posso contra os trambolhos dos ministérios. Fico-me pela ideia de que se querem mudar então deixem de lhe chamar «portugues» e passem a chamar-lhe o que quiserem. Sou pobre, não tenho nenhum poder. Ao menos posso indignar-me com estes atropelos…
mas o acordo vai dar espaço de liberdade, excepto no jurídico e também na ciência; não pode ser de outra maneira. Aliás vais ver logo os brasileiros subverterem-no a brincar, acrescentar coisas, derrapar; noutro dia um disse-me que tinha uma foto do Cazuza no birô, fiquei logo com os dedos dos pés a rir. Até logo.