IVG e taxas moderadoras – da demagogia sobre o espírito da lei

Mais uma demagogia. Não tem nada a ver com o enriquecimento ilícito? Tem. Tudo. Gritar bem alto sobre os poderosos que não vão presos, porque têm advogados caríssimos, porque recorrem, recorrem, esses malandros cheios de dinheiro. Dizer ao povo zangado que só há uma maneira de combater este absurdo, criar um crime que dispense a prova, que dispense a chatice do Estado de direito, mas que acalme em dias tanto sangue nas nossas gargantas zangadas.

Não tem nada a ver com a ainda mal explicada criação de dados com registos de pessoas condenadas por crimes de abuso sexual de menores e sua disponibilização não apenas às autoridades policiais mas eventualmente a escola e a vizinhanças e, portanto, ao “Correio da Manhã”? Tem. Tudo. Nos crimes que mais comoções provocam e que, por isso mesmo, mais convocam a razão de ser da invenção do Estado moderno ocidental, eis que o Governo dá de comer à fome natural de vingança e prevenções privadas (no meu prédio não, aqui não, vizinhos organizados). Pelo meio o risco monstruoso de linchamento moral ou físico de inocentes. Pelo meio uma ministra que diz estar em causa o “interesse das crianças”, uma jurista que não vê nenhum direito constitucional concorrente no assunto.

Com que então, como diz Teresa Caeiro, taxas moderadoras na IVG, porque se trata de um ato médico qualquer. É inocente, este erro? Não. Nada tem a ver com a exploração emocional da crise em prejuízo dos princípios jurídicos que regem o enquadramento da IVG? Tem. Tudo. A direita sobe as taxas moderadoras, sobe o preço dos transportes, faz do direito à saúde uma conquista diária em retrocesso e agora diz a milhares de pessoas, com doenças graves sujeitas a dificuldades financeiras insuportáveis, esta coisinha: – então e a IVG é à borla? Mesmo que uma mulher seja reincidente? Sim, essas que já se está a ver usam a IVG como um contracetivo!

É insuportável ver a direita a mover-se pela força da demagogia

A IVG não é um ato médico como outro qualquer. Gostava de saber quem é a Teresa Caeiro ou quem quer que seja para julgar a complexidade da “reincidência”. Gostava de saber o que tem a deputada a dizer de uma mulher que engravida uma vez porque o contracetivo falha e outra por efeito de interação medicamentosa, por exemplo. Ou por tantas e tantas circunstâncias.

Quanto à prova de insuficiência económica para que uma mulher não pague taxas moderadoras, como não dar cabo do espírito da lei? Dando exemplos: se a lei protege a liberdade e a confidencialidade íntima da mulher, como pode uma rapariga de 16 anos, dependente dos pais, fazer aquela prova se não quer, no seu direito, dar conta do facto? Se uma mulher casada ou em união de facto que, por razões íntimas, decide realizar uma IVG sem o conhecimento do parceiro, mas depende do mesmo economicamente, como faz a prova de insuficiência económica?

Quanto à reincidência, se eu interromper uma gravidez no hospital y e depois interromper outra no hospital x, não sendo possível fazerem um registo do meu ato, como é que a Teresa Caeiro me persegue, perguntando-me, a menos que eu me explique num confessionário aberto, como raio engravidei duas vezes e duas vezes perante um cinema esgotado fui fazer uma IVG?

Respeitar a lei é respeitar a sua letra e o seu espírito. Ou era.

Hoje no P3

5 thoughts on “IVG e taxas moderadoras – da demagogia sobre o espírito da lei”

  1. Uma gravidez indesejada não é uma doença. Se não é feito nenhum registo das IVG’s, não podendo portanto ser agravadas as taxas moderadoras em caso de reincidência, um montante razoável como taxa moderadora parece-me legítimo, desde que proporcional e equivalente às outras que já existem. E se a candidata à IVG não puder pagá-la no imediato, pois deverá haver mecanismos de compensação para esses casos, como a possibilidade de poder ficar em dívida por um certo prazo, ou eventualmente ser paga em horas de voluntariado, num serviço público onde o mesmo se enquadre, por exemplo. O que não faz qualquer sentido é não haver taxas moderadoras para as IVG’s e haver para a generalidade das utilizações voluntárias do SNS.

  2. oh pázinha! ganha juízo, agora o sns atende anónimos e em caso de morte avisa o soldado desconhecido, tudo em nome do sigilo e da liberdade da mulher.

  3. Mas, Dr.ª Isabel Moreira, por esse seu raciocínio, a ausência de multas de estacionamento, por exemplo, também seria um garante do sigilo e da liberdade dos automobilistas: se eu for multado em Viseu no dia de S. Mateus, toda a gente fica a saber que fui lá às festas…

    Ou, agora a sério, qualquer um de nós pode ir inspeccionar os registos das taxas moderadoras cobradas num Hospital público, seja por motivo de IVG, seja lá por que motivo for?

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