“Barro” de Rui Nunes

“Barro” é o nome e não o título do último livro de Rui Nunes. Do princípio ao fim a vitória do silêncio, um escritor que reconhecemos de outros livros seus, mas aqui atirando-se às causas dos seus espelhos, o texto mais auto-biográfico de Rui Nunes, gigantesco nas suas 61 páginas, um percurso de verdades que são causas de tudo o que numa escrita transgressora dá ao leitor o homem que conhece o abandono e por isso desconhece gestos vulgares vendo a vida espatifar os conceitos dos outros e assim torná-lo um apátrida.
O livro é uma luta meticulosa contra a opressão das palavras. Parece-nos evidente que “infância” ou “livro” ou “morte”, por exemplo, são substantivos devidamente ditados nos dicionários, mas Rui Nunes destrói essa opressão, quer nas palavras aparentemente mais inócuas, como estas, afinal palavras de cada um, como se a palavra fosse apenas o seu referente concreto e nenhum dicionário tivesse o direito de nos roubar essa exclusividade. Por isso, a infância pode ser abandono e por isso atenção desmedida aos bichos; por isso livro pode ser um romance para sempre inacabado, o som de um avô a prometer para amanhã o final nunca chegado; por isso morte pode ser um saber que a carregamos no caminhar por entre a vegetação e os bichos que os abandonados sequestrados pelo acaso de um avô rural sabem distinguir nome a nome, rejeitando a abrangência cega de palavras como árvore ou bicho.
Este livro é extremamente ideológico, e por isso é escrita autêntica, o amor entra na luta contra as palavras, há um mundo de gestos, dos outros, gestos, mas as palavras são sempre combatidas, ou o que fizeram com elas, por isso o horror a um livro que minta e à facilidade que com isso se cria a ficção ideológica da chamada harmonia ou felicidade.
Depois há os nomes, que não são palavras, são insoletráveis como Auschitz, são mais que palavras, e então escrever e escrever contra eles, para que deixem para sempre um rasto, para que não se possam esconder.
Rui Nunes está só, nasceu só, foi roubado às palavras habituais quando não devia ter memória, sabe que estamos todos sós, e só poderia ter o destino de nada querer com as fronteiras. É aqui que se define um dos elementos humanos e ideológicos mais importantes do Autor.
O homem cuja expressão que ouviu pela primeira vez na vida foi “é ali” (entrega) e não “é aqui”, não sabe o que é isso do “aqui”. Por isso viaja pelo mundo todo à procura de um lugar, rejeitaria sempre uma língua como pátria até porque rejeitaria ambas, como faz.
Por isso partir é o verbo até o dia em que é um dos de lá, seja que país for, sabe de uma nova língua, e sabe então que é hora de partir. Uma língua é já uma fronteira, é já uma sufocação, uma soma limitada de expressão.
Daí a magnífica guerra às palavras, “barro”, pois, o nome do livro, as palavras mortas com justiça pelo Autor na p. 51, a evidência da politicidade das mesmas, porque as palavras têm o poder do esconderijo e da mentira, diz, “é preciso desarticulá-las, macerá-las, até apagar a sua longa história de violência” “Não ter medo. Nunca. Das fronteiras. É nelas que pátrias estoiram”.
“Barro”, pois, até um oleiro qualquer e foram tantos os de Rui Nunes aqui expostos na sua escrita que é uma extensão de um homem de olho encostado ao que quer olhar, mais do que ver.
Um leitor atento descobre que todas as palavras do mundo, um exército que deixou Rui Nunes em sangue, encontram a sua derrota num “tumulto” de um rosto ou, diria, que é sempre um rosto.
Não há palavras que registam o rosto que não sou.