– Não te passa pela cabeça – disse ele – o que é andares fugido. Porque não tens papéis, porque arranjaste dívidas que nunca, mas nunca, conseguirás sanar, porque andam à tua procura para matar-te. Não, não te passa pela cabeça.
Eu sabia que uma vida humana não era fácil. Que a invenção do Planeta tinha desembocado num cenário, este nosso, que jamais pôde estar no programa. Mas aquilo, dito assim por sobre o tampo de mármore duma mesa de café, olhos acerados fitos nos meus, aquilo meteu-me respeito.
– Andas fugido?
Não cheguei a perguntar-lho. Eu não poderia dar-lhe os papéis, nem dinheiro que chegasse, nem um esconderijo. A minha pergunta seria curiosidade pura, e por isso tanto mais ofensiva. O que ele percebeu bem.
– Acredita, já me habituei. Agora há-de ser sempre assim. Nunca sei se chego livre, ou vivo, à noite de cada dia. Ou ao dia de cada noite. Nem isto é andar livre. Nem andar vivo.
Veia poética, depreendi. E lamentei-o mais ainda. Os poetas, ao saberem dizer tão bem de que sofrem, ainda mais se atormentam.
Poeta não sou, mas atormentada andei. Foi um abrir e piscar de olhos, mas juraria que tinha lá estado e não era só um vai-vem de sono. Pudesse eu dizer do que sofro e veriam o sofrimento que foi. Noite em claro, como em claro estava o que antes não tinha estado. Ou teria? Não cheguei a perguntar-lho. A minha pergunta seria curiosidade pura. Andou fugido, mas regressou. Mesmo sem papéis.
Fernando, hoje dá-me para chamar a atençãoo aos amigos. Questões de entendimento pessoal, nada mais. Eu creio que um poeta sofre menos por saber dizer bem aquilo de que sofre. Um poeta ou seja quem for.
Ah, claro, o texto está belo e dá que pensar. E a prova é que eu pensei mesmo…
O poeta sofre ao saber o motivo por que sofre, amigo Fernando. Mas, isso é certo, alivia o sofrimento alheio com a forma como descreve o que faz sofrer. E, afinal de contas, ver o sofrimento dos outros a diminuir acaba, sim, por aliviar a sua própria dor.
Espero, com estas palavras, ter aliviado a sua dor. Será, na verdade, a única forma de aliviar a que tudo isto me causou.
Enorme abraço.
Muito bom. E o meu optimismo vê nestes deliciosos diálogos uma “opera” em curso…
Valupi, achas que o Fernando anda a “operar”? Isso fica bem a um aspirínico.
Fiquei aliviada com a intervenção do Confúcio Costa.
Superior, este Fernando!
Não sei não… moro no Rio de Janeiro e nunca sei se chego ou
se vou sem uma espada por sobre a cabeça. Cidades violentas,
poetas viscerais… de qualquer maneira precisamos saber desta
dor, seja poeta ou não! Necessitamos nos virar do avesso para
nos propormos a ver o que somos, tudo exposto. Dói? Ah, dói e daí?
A dor é nossa mesmo não dá prá esconder tudo debaixo do tapete.
Adorei o blog, voltarei outras vezes! Bjs…
Senhores e Amigos,
Se eu ficar estragado, já sabem a quem dar a culpa. Préparez vos mouchoirs!
Quanto a ‘operar’: eu devo ser espertíssimo. Acreditam que também já me tinha vindo a ideia?
Mas ainda será preciso trabalhar muito. Os livros querem-se bons. E únicos. Só esses valem a pena.
Ser poeta é andar fugido de si próprio, mesmo com dinheiro e papéis, enganando a morte e a vida, acoitado nas existências alheias onde o poeta busca espelhos e caminhos possíveis para compreender e enfim aceitar. A si e aos outros.
Contaram-me, claro. Eu acreditei.
pois eu ando terra a terra, heróis do mar,
Fernando olha lá pá, que isto foi parar no número da Besta! Achas que o dragão tá de smoking?
http://clix.expresso.pt/gen.pl?p=stories&op=view&fokey=ex.stories/216964
concordo que haverá aí o feto de um conto. esperemos.
não concordo com a parte (menor) de que o sofrimento reconhecido – e sublimado – será maior: como dizem os psiquiatras, é sempre bom fazer-se a transposição criativa…
Não tenho qualquer opinião sobre este assunto.