Carta a Marina por causa do galego – 1

Cara Marina,

Informa-me você de que é galega, e que até passou uns anos numa faculdade em Santiago. Pede-me, depois, que reproduza um texto de Daniel Castelao («Un ollo de vidro», um dos seus mais conhecidos), e isto «para que toda a gente perceba», diz você, «que galego não é castelhano, e muito menos, português». Eu vou fazer-lhe essa vontade. Mas a sua última afirmação incita-me a alguns esclarecimentos.

Galego não é castelhano? Claro que não. O galego é, até, mais antigo do que o castelhano, porque mais evoluído, e portanto com uma história mais longa. Galego não é português? Claro que não, também. Mas houve um tempo em que galego e português eram, sem espaço para dúvidas, uma só língua. Simplesmente, o português sofreu, entre 1450 e 1700, uma drástica remodelação, feita sobre o figurino castelhano. O galego conservou por mais tempo a feição medieval comum, e só mais recentemente acabou minado pela língua do Estado. Já vê: estas duas profundas castelhanizações, primeiro a do português, depois a do galego, ainda por cima bem diferentes uma da outra, criaram entre galego e português um fosso que muitos consideram já intransponível. Eu não. Mas não nos apressemos.

*

Galego não é português. Concordo. Mas não do mesmo modo que não é castelhano. A diferença entre galego e castelhano, ou castelhano e português, essa diferença é fundamental. Trata-se de duas línguas diferentes. A diferença entre português e galego é doutra ordem. Vamos a uns exemplos.

O castelhano diz Esto es de tus padres. O português e o galego dizem Isto é dos teus pais. Um miúdo castelhano diz Yo quiero mi conejito. Um miúdo, seja ele da Corunha ou de Faro, diz Eu quero o meu coelhinho (mesmo que escreva «coelliño»). E, milagres dos milagres, galegos e portugueses dizem uma frase destas: Isso é para comermos, se quiseres. É, gramaticalmente, uma frase única em todo o Universo.

Certo dia, um brasileiro de visita à Galiza deu-se conta de que uma minhoca se chamava ali tal e qual como do outro lado do Atlântico, e pronunciou as imortais palavras: «Duas línguas que chamam minhoca à minhoca têm que ser a mesma». E em 2000, no velhinho Terràvista – nos primórdios destas discussões internéticas -, um galego, engenheiro agrónomo viguense, em diálogo com portugueses, escreveu esta frase não menos imortal: «Duas línguas que dizem da mesma maneira ‘Vai pró caralho, filho da puta’ têm necessariamente de ser a mesma».

A mesma língua portanto. Mas…

No romance Longe de Manaus, de Francisco José Viegas, revezam-se, de capítulo para capítulo, o português e o brasileiro, nitidamente, espectacularmente, e isso não obstante uma mesma ortografia. No romance A eternidade e o desejo, Inês Pedrosa escreve, aqui e ali, páginas dum convincente, e magnífico, brasileiro. Assim também (e ainda mais, porque há mais tempo separados), o português e o galego claramente se distinguem, mesmo se ortografados de modo igual.

Falamos, aqui, já não em ‘línguas’ diferentes, mas em diferentes normas dum mesmo idioma, que na Galiza se chama galego, em Portugal português e no Brasil, um dia, brasileiro.

Você sabe que, dum ponto de vista linguístico, só existem ‘variedades’. A certas distâncias entre variedades chamamos ‘dialectos’, a outras distâncias chamamos ‘línguas’. Mas os critérios, para uma coisa ou para a outra, são imensamente fluidos. Quer ver? Compare você os dois textos seguintes (o primeiro apareceu no Público, há umas semanas). Se reparar bem, concordará em que eles se encontram a uma distância… dialectal.

Por um lado, o processo decisório espelha uma clara erosão da legitimidade política e dos seus critérios de oportunidade para decidir questões com um carácter acentuadamente técnico. Por outro lado, muitos dos problemas que há 25 anos eram resolvidos com base em critérios estritamente políticos constituem hoje objecto de estudo de diversas disciplinas científicas.

Por un lado, el proceso decisorio espeja una clara erosión de la legitimidad política y de sus criterios de oportunidad para decidir cuestiones con un carácter acentuadamente técnico. Por otro lado, muchos de los problemas que hace 25 años eran resueltos con base en criterios estrictamente políticos constituyen hoy objeto de estudio de diversas disciplinas científicas.

Está a ver? Do ponto de vista lexical, os dois textos só diferem numa palavra: «resolvidos» e «resueltos». E esta mesma divergência é, se virmos bem, meramente morfológica. Um chinês rir-se-ia de chamarmos a isto duas ‘línguas’.

Fique bem. Amanhã, ou depois, haverá mais.

25 thoughts on “Carta a Marina por causa do galego – 1”

  1. Fernando
    Bem dito, por ser bem pensado. Foi precisamente isso, curiosamente, que fizeste como exercício de semelhança entre o Português e o Castelhano, que eu pretendi com a transcrição para Castelhano do poema do Manuel María, nos comentários acerca da chuva sobre Santiago, deixando a versão portuguesa ao cuidado de quem eventualmente leia. A questão essencial mantém-se: que é uma língua? (Um valenciano até dirá que o “Valencià” é uma língua e o “Català”, outra…)

  2. Bem, de acordo no essencial. Só um “pequenino” pormenor: no exemplo escrito não há apenas uma palavra de diferença lexical entre os dois textos. Há também a questão, esta sintáctica, do verbo auxiliar “fazer” e “haver” (tempo).

    Mas é muito pouco, de facto…

  3. Fernando
    Não traduzi para Poruguês precisamente para que quem lesse o poema descobrisse por si mesmo qual dos dois entendia melhor: se o original galego, se a minha versão em Castelhano. Claro que usei de uma ou outra pequena velhacaria, como, v. g., optar por “calofrío” em vez de “escalofrío”, por julgar aquela forma mais facilmente compreensível.
    Que dúvidas poderiam restar a quem não conheça bem o Castelhano? Talvez “tirar” (atirar), “truenos” (trovões) e “ola airada” (onda irada). Os parênteses não se destinam a ti, naturalmente.

  4. Daniel,

    Não, os parênteses são-me úteis. Desconhecia «truenos». E mesmo «airada» tinha-me feito espécie. Sei que o nosso «vida airada» é um castelhanismo (já patrimonial), mas ignorava que «airada» valesse por «irada».

    Já o raciocínio da compreensão pela leitura me parece mais tortuoso. O galego, se ortografado de feição tradicional (e não castelhana), é-nos mais perceptível que na actual grafia. Mas isso é conversa seguinte.

  5. Polêmico, é polêmico sempre o senhor Venâncio… mira que pôr em causa no último parágrafo a identidade linguística do português… :D

    Como galego, sempre tive a mesma dúvida sobre as línguas, sobretudo após conhecer há uns anos um russo (que viera estudar a Compostela ao abeiro do programa Erasmus) tinha dificuldades para identificar uma pessoa galego-falante de um italo-falante. Como tudo era mais o menos latim, para ele soavam quase à mesma cousa. Decerto para um chinês devem soar igual o francês, o português ou o catalão ;-)

    Por outra parte, todo o anterior no seu texto reaviva, reconfirma e reconforta o meu reintegracionismo linguístico. Conhecia a frase da minhoca, mas a outra embora nunca a escuitara não deixa de ter menos razão ;)

    – gerardo

  6. Bom, no comentário anterior atribuí ao senhor Venâncio o artigo, mas afinal tampouco tenho bem claro quem é o autor… :p

    – gerardo

  7. Caro Gerardo Uz,

    A sua atribuição do artigo é perfeita. De resto, o nome do autor estava ali em cima, não reparou?

    E é um facto: nós todos (galegos, portugueses, brasileiros, espanhóis, italianos, franceses, etc., etc.) falamos dialectos do latim. O meu exemplo do chinês tinha a ver com isso: dentro do «chinês» a diversidade, que é grande, não é maior.

    Mas digo mais: um português ou um italiano entendem-se tão bem, ou tão mal, como dois aldeões de fala flamenga vivendo a 50 km de distância. Na moderníssima e rica Bélgica.

    Um abraço.

  8. Ah, Efe. Você é um bom fotógrafo, mas um péssimo leitor. A citação completa é:

    «La doctrina oficial a día de hoy es: el gallego es una lengua independiente del portugués, aunque comparte con la “lengua hermana” un origen común.»

    E, se lesse mais um bocadinho do artigo, daria com isto:

    «Dentro de la corriente clásica de la filología románica, siempre se tuvo muy claro que gallego y portugués eran y son la misma lengua […] y cualquiera que sepa un poco la realidad dialectológica del español o del portugués puede comprobar que no hay más diferencias entre el brasileiro y el portugués europeo o entre el argentino y el español que entre el gallego y el portugués».

    Que tal?

    Repare: eu não quero valer-me da autoridade de Santiago Alba Rico (o autor do texto, magnífico estilista e comunicador), embora concorde com o que afirma. Prefiro é que você (ou qualquer outro) aprenda a ler. Ou a pensar.

  9. Isto dizia “marina” (Fev 11th, 2008 at 0:53):

    1.- «Bem, não fique zangado, mas eu, galega, que até passou uns anos numa faculdade em Santiago, onde, é verdade, chove como o caraças, percebi que o Manel falava do Chile e não da minha terra.»
    COM.- Que a “galega” Marina passasse uns anos numa faculdade da universidade “española” (sic) de Compostela explica o que abaixo diz sobre Castelão e como é que interpreta o “post” castelaniano.

    2.- «Ponha em post “Un ollo de vidro” do Castelao, para que toda a gente perceba que galego não é castelhano, e muito menos, português.»
    COM.- Não vou copiar todo o texto, mas apenas o “post” a UN OLLO DE VIDRO (UM OLHO DE VIDRO):
    «Leutor:
    »Xa que liches as memorias do esquelete soterrado n’un dimeterio de cibdade e xa que te regalaches deprendendo cousas do Alén que non sabías, bem podes escoitarme un anaquiño á mín e pra rematar axiña.
    »Unha cousa que fixen [fiz] con premeditación e nouturnidade podería levarme á cadea habendo testigos [castelhanismos: testemunhas]; mais eu asegúroche que non foi por mal. Atende.
    »Co ollo de vidro mercado ô [ao] enterrador de cibdade pillei o camiño da parroquia de Tal e alí, no adro da Eirexa [igreja] e axudado por um home valente, pasada medeanoite, abrín a sepultura onde repousa pra sempre xamais un amigo meu. ¡Medo papeino!
    »O meu amigo foi rapz de grande intelixencia e d’un esprito superior á toda loubanza. Estudeamos xuntos na vella Compostela e a gripe escamoteouno da miña vista. Como derradeira proba de fonda amistade quixen faguerlle o regalo [presente] do ollo de vidro. Dispois de todo eu non-o quería pra nada!
    »Abrimos a tapa da caixa bem amodiño pra non escangallal-o [sic: e não “escangalla-lo…” como querem os “señores” do “galego” em Compostela…] esquelete. Ou, leutor: meu amigo conservaba o seu traxe e os seus zapatos novos, proba de que o enterrador da aldea é mellor cristiano que o seu colega da cibdade.
    »Na cunca direita da sua calivera pousei o ollo de vidro, riba das suas maus [mãos] pousei un bloque de papel máis un lápiz. E arrechegándome ô buraco do ouvido díxenlle así:
    »-Querido Pedro: Velahí che deixo un ollo de vidro pra que vexas, papel e lápiz pra qu’escribas. Serás o rey n’iste cimeterio; mais eu p´regoche que non te fagas cacique. Pasados alguns meses virei recoller canto tí escribas. Perdóname, amantiño, que non che dea [dê] un bico [beijo]. Adeus e deica logo.
    »Se canto escriba o meu amigo é dino de intrés asegúroche que será publicado pra que compares e vexas que non é o mesmo ser soterrado no adro d’unha Eirexa que n’un cimeterio de cibdade.
    »Regálate como poidas, leutor, e non che digo mais.
    »Castelao».
    Se trás o galego que Castelão utiliza não está a língua que mantém o Português, que venha São Pedro ou Santo António de Lisboa e no-lo esclareça.
    Deve ter-se em conta que, quando Castelão escrevia para o Povo (sic: a coleção Céltiga e outras eram caderninhos semanais dirigidos ao Povo), nem o escritor nem sobretudo o Povo galego fora alfabetizado em nenhum galego dos escritos hoje: nem no “galego” que hoje impõe o reino de españa, nem no galego da Associaçom Galega da Língua nem, menos ainda, no Português galego. Apenas eram alfabetizados, os que o eram (mais dum 50% da população era analfabeta, bastante mais; obrigatório era o ensino primário, dos 6 aos 9 anos, mas obrigatório dessa maneira…), só e unicamente no castelhano “normativo”.
    Eis o motivo da “ortografia” castelhanizada e dos castelhanismos no Galego, tanto de Castelão, quanto do Povo. Onde é que se “escribía”? Apenas nos âmbitos dominados pelo castelhano institucional: Na escola, na Administração… na Igreja. Porque até a Igreja, católica ela (também dessa maneira), foi a “longa manus” do nacionalismo castelhano, primeiro, e do espanhol, a a partir do séc. XIX.

    3.- «Fico lixada com essa cena do integracionismo. Penso que só pessoas que sabem escrever e falar castelhano e português correctamente estamos avalizadas para falar do assunto. Com essa coisa do integracionismo, já não precisava de dicionário sempre que leio o Rivas, ou o Suso de Toro. O galego de Castelao, do Rivas, da Rosalia, é lindo, esquisito [= refinado, fmv], rural, e não quero que seja portunhol.»
    COM.- Deixo a opinião da senhora assim. Mas não dá nenhuma prova do que diz, salvo o uso castelhano de “exquisito”, bem diferente do “esquisito” português. Quanto à pretensão de conhecer corretamente as línguas em causa para poder “falar” (eu melhor diria “opinar”) do assunto, se for válida à totalidade, exigiria da senhora calar até conhecer bem o que procura o reintegracionismo. Mas esse é outro tema.

  10. Por sinal: Se no conto ou, antes, relato curto de Castelão ficarmos apenas na face gráfica, então nada entendemos da mensagem que procura dar o escritor e político (acho que mais político do que escritor): o olho de vidro não projeta a mesma realidade -GALEGA- colocado na “calivera” dum esquelete de cidade, urbano (castelhanizado) que colocano na dum esquelete soterrado no adro duma igreja de vila ou rural (galego-utente).
    Essa é uma possível leitura… “filológica”. Há outras, aparentemente contraditórias, mas não menos retranqueiras: A vila (Rianjo?) está dominada pelo cacique; a cidade não, ou não tanto, ou doutro jeito.

    Curiosa a referência à causa da morte do amigo: a gripe de 1918… Enfim. Cousas, que diria Castelão.

  11. Z
    É como em Português. (Não penses que eu sei Galego. Há é um dicionário na rede que podes consultar.)

  12. Z,

    Os galegos dizem, tal como nós, «investimento», «investir».

    Compreendo, meu malandreco, que gozes – e logo tu – com a coisa castelhana. E sim: também «inversión» tem uma acepção sexual, como consta do Diccionario de la Academia Española (RAE), que podes consultar aqui.‏

    *

    Estás a ver? A esta hora da noite, estão duas pessoas a trabalhar para ti. O Daniel, com uma hora menos que tu no relógio. Eu, com uma a mais.

    *

    Daniel,

    Conheço na rede este‏ dicionário de galego, útil mas fracote.

    O melhor é, ainda na rede, este, o de Isaac Estraviz. É ortografado na «Norma Agal» do galego, mas podes procurar também pela ortografia autonómica, e até em padrão português.

  13. Fernando, costumo consultar é o segundo “este”. Que também não é grande coisa. Mas, pelo preço que no-lo dão, não há razão de queixa.

  14. obrigado amigos. Eu estou com umas horas a menos do que aí na Europa, Fernando, ou és despistado ou andas a assobiar para o lado a querer sacar uma georeferenciação mais exacta aqui de moi. Mas o Daniel já tem a palavra-chave.

    eu não resisto a perguntar a quem sabe, mas as respostas são facultativas, sempre

    e prometo tentar não abusar

  15. ao fmv
    “Ah, Efe. Você é um bom fotógrafo, mas um péssimo leitor. A citação completa é:”

    Eu li tudo (e tb concordo). Não citei todo o parágrafo, propositadamente. O uso dos teasers não cabe apenas ao mundo da imagem.

    ;)

  16. Alguns apontamentos tangenciais:

    Nom sei se “espeja” existe em castelhano, mas difícilmente será visto num jornal. Mais provávelmente, verá “refleja”. O mesmo para “con base en”; antes lerá “en base a”.

    Infelizmente, em Corunha poucos miúdos querem já um “coelhinho”. Os mais dos rapaces das cidades galegas dizem “conejito” ou, mais provavelmente, “playstation”. O galego aínda é a lingua maioritária no pais, mas o uso é baixo nas cidades, especialmente entre os novos. A excepçom é quiçá a capital Santiago, onde a língua está a ser recuperada.

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