Todos os artigos de joaopedrodacosta

Eu gosto muito da REN e os ignorantes que se fodam

Como é óbvio, toda a polémica em torna das linhas de alta tensão da REN (de longe, a mais bela empresa de Portugal) é uma absoluta palhaçada fomentada por gente iluminada (pela própria empresa). Se essa malta aproveitasse a ideia deste bacano chamado Richard Box, deixava de pagar contas à EDP (essa sim, uma grande vaca que nos anda a roubar há anos) e ainda poderia fazer como os bacanos da UVA e produzir coisas giras como o vídeo deste tema dos Battles muito apropriadamente intitulado «Tonto». Mas não, preferem protestar e fazer figuras tristes na televisão.

Dois selvagens ao piano ou a guerra das flores

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A revista Lux do passado dia 4 de Junho trazia esta bacorada atribuída em discurso directo a um tal José Piano que com um seu irmão (também Piano) mantém uma loja de flores na Avenida da República: «Não é preciso comprar numa florista a cheirar a flores para mortos, pode fazê-lo numa florista com bom ar e sem ter de gastar muito dinheiro com isso.»

Trata-se de um gesto miserável que repete um outro no passado mês de Março na revista «N.S.» do Diário de Notícias, quando uns pobres de espírito que são donos de umas lojas de flores aqui no Bairro Alto chamaram às outras floristas da nossa zona «floristas de esquina». A jornalista Vera Moura assinalou-me a repulsa que lhe causou ter que escrever (transcrevendo) essas ridículas palavras, mas obviamente teve que as reproduzir tal como foram afirmadas por esses pobres de espírito.

Todos nós sabemos que isto está mal, a luta pela sobrevivência está a atingir proporções terríveis. Mas há um mínimo de dignidade que é preciso manter. Um pobre diabo, só porque tem uma loja de flores, não pode insultar os outros que também possuem lojas de flores. Não tem esse direito. Chamar a alguém «florista de esquina», ou dizer que esse alguém vende «flores para mortos», é uma atitude infame que não tem perdão. Até porque essas pessoas podem não saber francês ou tocar piano, mas são pessoas dignas, simpáticas e competentes no seu trabalho que ajudam a tornar a nossa vida um pouco menos cinzenta.

Apetece-me dizer a esses selvagens ao piano e a esses pobres de espírito uma fala popular que ouvi há pouco tempo aqui na rua: «Gandas malucos, vão vomitar para outro prédio!»

José do Carmo Francisco

Primícias – 2

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O exército é o espelho da nação, e isto era o que se lia nos panfletos colados a esmo nas ruas da cidade, virava-se uma esquina e logo tropeçavam os olhos naqueles rectângulos de cor envergonhada e baça, não tão baixos que pudesse mão herética meter-lhes a unha e silenciá-los, nem tão altos que risco houvesse de perder-se na atmosfera da tarde a jaculatória patriótica, o exército português é tão bom como os melhores.

Muito melhor que os melhores, diremos nós para que a verdade se saiba, pois convém a César dar o que de César é. E para o provar vamos ali à foz do Massanza, um destacamento avançado onde um pelotão de atiradores vai defendendo a soberania, do outro lado do rio alastra na paisagem, entre arames farpados, uma sanzala de realojados, que estendem ao sol as misérias da lepra.

Um dia os rústicos soldados saíram dos abrigos e deram-se a construir uma pista de aterragem, tinham-lhes prometido uma avioneta que poisaria ali uma vez por quinzena, não há nada melhor para romper o isolamento, para resistir à loucura ou receber o correio que houver, sempre se tem a ilusão duma ligação ao mundo. À custa de tempo e de suor aplainaram à mão esta faixa com dez metros de largo, esquartejaram umas dúzias de mangueiras bravas que arrastaram para as bermas, a pista começava logo à beira do rio e alongava-se até tropeçar ao fundo na colina, o resto do milagre haviam de fazê-lo os aviadores. E um deles o terá feito, uma vez sem exemplo, aterrou um dia a passarola mas só saiu daqui deixando atrás a carga toda e metade da gasolina, que a pista foi celebrada com cerveja mas não ia além de sessenta metros mal medidos, tudo quanto podemos fazer é passar em voo rasante e largar os sacos de biscoitos e massa, é largar as latas da marmelada e do atum, é largar os sacos do chouriço e da carne, se a houver.

E foi a partir daí que toda a canzoada da sanzala passou a regular a vida por um estranho calendário, mal se ouve ao longe o roncar dum avião e logo os bichos se põem a atravessar o rio, espadanando na água as patas frenéticas. Cada um escolhe o seu terreno ao longo da pista, e é vê-los a disputar aos irados soldados os restos dalgum saco rebentado, lá vai este a fugir para o mato com um par de chouriços nos dentes, aquele abocanhou um pão, a princípio ainda se ouviam tiros e rajadas a afugentar os bichos, agora já nem isso, toda a gente afinal concluiu que a vida custa a todos, que todos ficam parecidos no retrato, o exército português é melhor do que os melhores.

Jorge Carvalheira

«Ex-libris»

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Há vinte boas razões para ler-se o conto «Ex-libris», de VASCO GRAÇA MOURA, no «Actual» do último EXPRESSO, que começa assim:

O meu nome é João de Melo Saraiva e nasci em 1950. Sou engenheiro informático. Além disso, colaboro com várias leiloeiras na elaboração de catálogos de livros antigos. Esse é o meu hobby e também me rende algum dinheiro. A minha mulher pôs-se a andar, vai para 20 anos, assim, sem mais nem menos, por lhe ter dado a súbita guinada de ir viver para Jerez de la Frontera com um espanhol que ela conhecera numa caçada à raposa em que tínhamos participado. Só a Helena é que montava a cavalo e eu preferi passar a manhã a espiolhar a biblioteca do monte alentejano dos nossos anfitriões. Tudo começou aí. Ela deixou-se fascinar pelo bigodinho rente, pela melena de cigano, pela casaca vermelha muito assertoada e pelas botas de montar do sujeito, enquanto eu me enfronhava em velhos cartapácios e ia tirando uns apontamentos sobre a edição de Os Lusíadas de 1613 e a biografia do épico, sob o título de «Ao estudioso da lição poetica», assinada por Pedro de Mariz.

Mas cedo o protagonista entrará em pormenores que – não fosse a minha sólida modéstia – me estragariam para a vida. Veja-se isto:

Nunca tive grande paciência para o Castilho, salvo a propósito das análises sobre «estilo e preconceito» de Fernando Venâncio, um professor que vive na Holanda. Nunca encontrei (nem procurei) a página em que ele diz isso e que, se estou bem lembrado, começava enfaticamente: «A leitura, meus amigos, sabeis vós bem o que é a leitura?…»

Pronto. Leiam o resto.

Uma inesperada lição que vem de Inglaterra

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De Inglaterra não tem vindo nada de positivo nos últimos tempos. Só médicos e monstros. Monstros e médicos. Arrogância e estupidez, jornalismo de sarjeta e mais estupidez. Nojo e repulsa. Maldade em estado puro; se é que isto se pode escrever.

Pois eu rejubilei ao ler um livro inglês de Clive Gifford, Football – the ultimate guide to the beautifull game, editado para Portugal pela Sistema J como O mais belo jogo do Mundo. É óbvio que fui logo ver o que é que lá estava sobre o futebol português. Gato escaldado de água fria tem medo.

Mas não há razões de queixa. Pelo contrário: o que está escrito está correcto e é uma lição para muitos jornalistas portugueses que se limitam a «repetir os erros dos anteriores» como o caso da paranóia das Ligas. Entre 1935 e 1938 disputaram-se torneiros particulares ao mesmo tempo que continuava a ser disputado o campeonato de Portugal que teve o seu início em 1921 e durou até 1938. Como o Benfica ganhou 3 desses torneios, muitos jornalistas começaram a considerar essas provas como campeonatos, fingindo esquecer que o campeonato de Portugal só acabou em 1938.

Pois este livro não está com meias medidas: explica com muita calma que «como ficavam muitos domingos livres disputaram-se também as Ligas durante 4 anos (1935/1938) vencendo o F.C. Porto uma e o Benfica três.» Mais à frente explica que o campeonato nacional começou em 1939 quando a Federação resolveu criar a Taça de Portugal com jogos a eliminar e o campeonato a disputar por pontos e em duas voltas.

Fingir que os torneios experimentais de 1935/1938 já eram campeonatos da série que começou apenas em 1939 só para gente ignorante. E veio um livro de Inglaterra pôr os pontos nos is.

José do Carmo Francisco

Terceira via

No tempo em que havia apenas caminhos de cabras, os portugueses saíam de Lisboa e levavam sete horas até chegar a Braga. Iam de Faro a Bragança seguindo as curvas de nível, e antes acautelavam testamento, para o caso de falecerem no caminho.

Um dia chegou a Europa e trouxe-lhes vias rápidas, e auto-estradas que rasgavam as montanhas, e tinham terceira via nas subidas. A ideia era poupar tempo, era habituá-los lentamente ao caos da civilização, ao moderno frenesi de quem tem pressa e um horário para cumprir. Porém eles, deformados pela história, esquivaram-se ao conceito. E ninguém lhes tira da cabeça que a terceira via das estradas é a dos romeiros que vão a pé a Fátima. Porque cumprir, só as promessas à Virgem.

Agora, indo para a estrada, os condutores portugueses ainda afivelam a máscara do frenesi moderno. Porém, atacados de piedade, oitenta por cento deles reservam a terceira via aos peregrinos. Alguns lá se lembram da Europa, esse hipermercado da civilização. Mas quanto a modernidade, a faixa do meio é-lhes mais que bastante. Encostam os cotovelos ao balcão, mudam de vez em quando de quadril de apoio, e ficam-se a ver passar algum civismo que passa.

Vivem muito bem assim, na alegre inconsciência dos cretinos. E quando calha matam-se uns aos outros, com uma tranquilidade ainda maior.

Jorge Carvalheira

«Crer é poder»

O jornal Sporting existe desde 31 de Março de 1922 e é, por isso, um dos mais antigos jornais de Clube da Europa. Saiu recentemente mais um número e lá está o que eu não queria ver: no site «www.sporting.pt» reproduzem a primeira página com um erro clamoroso. Trata-se da frase «Crer é poder» que surge em vez de «Querer é poder».

Numa semana em que o presidente da Direcção deu uma entrevista à Visão onde, blasé, se queixa do tempo que perde com o Sporting, tanto a despachar assuntos como a acompanhar a equipa de futebol, aparece dias depois o jornal a dar-nos este exemplo de incompetência a lidar com a língua portuguesa. Duas tristezas entre uma quinta-feira e uma terça-feira, é muito para um «leão».

No tempo da «quarta-classe bem tirada» qualquer pessoa sabia a diferença entre «querer» e «crer», pois querer tem a ver com vontade e crer tem a ver com fé. Tal como sabia a diferença entre «cozer» na panela e «coser» com agulha. Penso também em toda a legião de jornalistas e de colaboradores que entre 1922 e 2006 escreveu no jornal Sporting dando o seu melhor. Alguns devem estar a dar voltas no gavetão.

Mas não é apenas a língua portuguesa que aparece maltratada. É o facto de sermos motivo de chacota para os outros. E isso também é um ónus pesado. Ainda há pouco tempo o director (que surge sempre nas páginas do jornal de braços cruzados) tinha confundido «arguido» com «acusado», mas foi numa página interior. Agora dar um erro crasso na primeira página e em letras grandes é mesmo para ficar envergonhado. Como dizia o Poeta – «o que não tem sentido é o sentido que tudo isto tem».

José do Carmo Francisco

Intervalo poético

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A poesia não nasceu para os «intervalos» da vida. Mas, se não criarmos intervalos para ela – como para o café, ou para uma volta ao quarteirão – quando chegaremos, muitos de nós, a ela? Pois então.

Seja, hoje, IVO MACHADO (Açores, 1958) e a sua última colectânea, Poemas Fora de Casa, de 2006 (edição da Exodus). Tem organização e ilustrações de Álamo Oliveira. Daí tiramos esta preciosidade.

TELEGRAMA

Filha: queres água ou nuvem?
Não penses, responde

– Água!

Eu sabia

Dentro de ti
o lago imenso da semente inicial.

Mais sobre o autor aqui.

NACIONAL-QUÊ?

Quando lho pediu a juventude inventou-se nacional-revolucionário, um rótulo que parecia cabalístico mas não tinha segredo nenhum. Era o mesmo que ser nacional-socialista, sem o fardo de o parecer. Aqui há tempos andou na televisão, a falar duma ficção recente sua, o retrato retocado dum professor de Finanças muito antigo.

Ponderou-lhe os predicados pitorescos, os cinismos de farsante, as artimanhas de frade. E alargou-se então no que chamou a sua grande inteligência patriótica. Sublinhou que o professor conduzira Portugal à glória dos eleitos. E considerou natural que, durante o seu governo, metade do país passasse fome, e outra metade fosse imolada numa guerra demente.

Achou bem que o país todo vivesse numa escuridão medieval, porque um povo é invencível se tiver a coragem de ser pobre. Isto mesmo decretara o professor. Já existir na Europa, em 1954, um campo de concentração para enjaular adversários políticos, e onde não mais que trinta portugueses foram levados à loucura e à morte, era para o nacional-revolucionário uma simples questão de equilíbrio do mundo.

Dizia ele estas coisas, assim em frente da câmara, sem levantar os olhos do soalho. É de se compreender. Desplantes deste calibre deixam vergonhas na cara, que um verniz ligeiro não disfarça. Tal como as mós de moinho penduradas ao pescoço, fazem peso na cabeça. Mesmo a um confuso nacional-revolucionário.

Jorge Carvalheira

Terceira canção para Maria José

Na voz de Maria José permanece, ao mesmo tempo, a frescura da água de dois rios (o Alva e o Ceira) e o peso das pedras da serra do Açor. A cidade em frente tem no asfalto negro da Almirante Reis o espelho reflector do calor desmedido deste Setembro que já não respeita o calendário nem as estações do ano. É na ligação entre a frescura da água e o peso da pedra que Maria José modula a voz para responder às agressões e ao desgaste do quotidiano da cidade. Seu ruído e seu cansaço. Sua confusão e seu efémero. Porque sem raízes na terra.

Desde que acende a primeira lâmpada na casa da manhã até ao momento de apagar a última luz da noite há, no dia de Maria José, uma sucessão de tarefas quase invisíveis. E não deixam de ser reais, efectivas e completas mas são quase invisíveis pois não existe ruído à sua volta. Vai à praça num instante, corre à padaria, quase voa até ao talho, trazendo assim, numa fracção mínima de tempo, os víveres necessários ao almoço e ao jantar.

As sobrinhas fazem, com o pai de Maria José, o vértice de um triângulo feliz. Três gerações que se juntam à mesa para uma refeição de palavras. De um lado a memória, do outro lado o futuro. Maria José faz o enlace destas duas perspectivas. As meninas querem brincar pois já sabem, mesmo sem o saberem, que há uma idade para tudo. Os adultos não brincam com brinquedos. Os adultos são pastores de memórias, sempre aflitos não vá mais uma perder-se no vazio do esquecimento. E não há cão capaz de a trazer de volta. Maria José sorri depois de mais um dia. A felicidade é sempre uma convenção. Não tem utensílios de aferição, nada nesta matéria é objectivo. Há quem seja feliz produzindo e multiplicando a felicidade dos habitantes da sua casa. À custa de uma sucessão de tarefas quase invisíveis. Tal como permanece invisível a frescura da água e o peso da pedra na voz de Maria José. Como se de repente o Instituto Superior Técnico fosse a serra do Açor, a Almirante Reis fosse o rio Alva e a Morais Soares fosse o rio Ceira. A voz de Maria José justifica, altera e precipita esta nova geografia da cidade. Entre a água e a pedra como na primeira e mais feliz manhã do Mundo.

José do Carmo Francisco

Aviso à navegação

Alguns comentadores que aqui me lêem textos, em vez de deixarem um comentário qualquer, a que terão direito, praticam afanosamente a velha técnica de acrescentar a continuação da história.
Não duvido de que o fazem na maior candura de alma, e de que apenas os move a busca da perfeição.
Mas peço-lhes um favor. Vão-se foder e desamparem-me a loja.
Não é por arrogância que o faço. É que já me falece a paciência.

Jorge Carvalheira

O avental de Vítor Pereira

Vítor Pereira é o presidente da Comissão de Árbitros da Liga Portuguesa de Futebol Profissional. A primeira imagem que tive dele foi na «Bola Magazine», um texto de Cruz dos Santos sobre as suas actividades teatrais. Vejo-o ainda hoje de avental num sketch perante uma plateia atenta de um bairro periférico de Lisboa. Mais tarde li uma enorme gaffe desse senhor quando se referiu a Dário Fo como autor da peça «E não se pode exterminá-lo?» de Karl Valentim. O lance do golo do Porto contra o Sporting na segunda jornada do campeonato nasceu de um erro crasso do árbitro. O defesa Polga, já em queda, desviou a bola que era conduzida pelo avançado Postiga, e na sequência desse corte, o guarda-redes do Sporting recolheu a bola com as mãos. Todos os especialistas na matéria consideraram erro do árbitro que também esteve péssimo no capítulo disciplinar deixando sem cartões vermelhos dois jogadores do Porto. Num assomo corporativo, o inefável Vítor Pereira apareceu a assinar um «esclarecimento» técnico que nada esclarece e que visa apenas tentar esconder com palavreado vazio o erro decisivo do árbitro do jogo das Antas. Qualquer pessoa percebe que um jogador só pode «passar» uma bola se a tiver. No caso quem a tinha era o Postiga que conduzia um ataque. Já em queda e (portanto) sem qualquer gesto deliberado (que é a palavra usada nas leis do jogo), o defesa Polga apenas «desviou» a bola, apenas «cortou» o lance, não fez nenhum passe nem poderia fazer porque estava caído no relvado e quem tinha a bola era o seu adversário. Em qualquer sociedade secreta há sempre um homenzinho com avental pronto a reescrever a História. Mas para isso é preciso saber escrever. E ter razão. Coisas que não se passam com este ex-actor amador.

José do Carmo Francisco

Segunda canção para Maria José

Quinta das Conchas, lugar
Onde a tarde se desenha
Por entre a água a cantar
E um perfume de lenha
Entre a relva dos caminhos
Na sombra do arvoredo
Dou passos tão sozinhos
O meu dia é um enredo
De memórias e imagens
Testemunhos, despedidas
O teu rosto nas paisagens
Desafia as nossas vidas
De quem procura tua voz
Entre a água e esta lenha
Há som de moinhos e mós
Na tua pronúncia serrenha
Quinta das Conchas, Lilases
O parque onde tu não vais
Há um grupo de rapazes
Joga até já não poder mais
Caminho que tu não cruzas
Mas às vezes em ansiedade
Olho as saias e as blusas
E não descubro a verdade
A verdade é que não eras
Tu a mulher neste passeio
É mais uma das quimeras
Do meu tempo de receio
Receio que nunca venhas
Quinta das Conchas, lugar
Onde em tempo as azenhas
Faziam a farinha a cantar
Quinta das Conchas, Lilases
Onde o vento transfigura
Tristezas feitas tenazes
Num ribeiro de ternura
Quinta das Conchas, lugar
Ali a saudade é um posto
Onde o sol vem desenhar
Os limites do teu rosto

José do Carmo Francisco

À minha medida

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Sempre gostei do princípio antrópico. Ele diz: o Universo é como é porque nós existimos. É a versão eufórica desse princípio, e também a mais fascinante. Bem mais fascinante do que a versão fatalista: o Universo é como é para que nós existamos.

Simplesmente, existe hoje uma formulação mas refinada. Diz assim: este Universo é o único em que nós somos possíveis. A coisa é mais picante do que parece, e até bem mais do que a leitura criacionista da formulação. Com efeito, afirma-se aí que o Universo está feito à nossa medida, sim, mas também que ele não é o único pensável, e provavelmente nem o único existente. Explico-me.

Este nosso Universo está construído segundo as exactas – e estreitíssimas – constantes em que a vida, a vida como a conhecemos, foi possível. Uma pequena variação inicial, e estávamos fritos. Um acaso absurdamente feliz, portanto? Talvez, mas é pouco provável. A verdadeira explicação é duma simplicidade alucinante. Este é um dos infinitamente numerosos Universos existentes. E um deles tinha, por força, que ter estas medidas. As nossas medidas. As exactas, mas infinitamente casuais medidas que nos fazem.

Desencanta-me esta simplória matemática? Sinto-me defraudado? Qual! Todos os dias dou graças.

Pastor de Labão

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Nessa altura eu tinha namorada, e escrevia num blogue textos de circunstância. Mas a vida não corria bem. Eu há sete anos à procura dela, da vida e da namorada, e ela a persistir em esconder-se. Era uma teimosia. Eu a entregar-me cada vez mais aos textos, ela a desvanecer-se cada vez mais.

Um dia disfarçou-se de comentadora, atrás duma alcunha graciosa, sugestiva. E vinha assídua, calorosa, vinha sempre fiel, estava sempre na caixa dos comentários, quando lá fazia falta. Trazia a sua nota, deixava um incentivo, era a leitora melhor que pode haver.

Até que não resistiu e apareceu-me no e-mail, a duras penas descobrira o endereço. Exagerou na sua admiração, e sussurrou-me, no fim, que dispusesse. Eu culpei algum amigo inconfidente e fiquei sossegado.

Assim passámos a viver a três. A namorada a esvanecer-me em casa, eu a escrever textos de circunstância, e a minha fiel leitora a comentar. A própria namorada lhe sentiu a persistência – tens aqui admiradora apaixonada! – fez-me notar certa vez. De horas em quando ela aparecia no correio, porque há coisas que não cabem na caixa dos comentários. E eu deixei andar por si aquele enleio, a imaginar feitiços na literatura, a convencer-me que o verbo pode operar maravilhas.

Um dia, ao fim de sete anos, acabou por dissipar-se a namorada. Foi-se embora, exasperada, por tanto se esconder. E eu abri a corte à minha admiradora, subindo a escada emotiva costumeira. Ela acompanhava-me a escalada com reticências discretas, e sugestões nebulosas, e os véus translúcidos que um bom pudor não dispensa. As coisas chegaram a aquecer, em bom rigor havia incêndio à vista.

Certa noite chegaram dois e-mails, iguais rigorosamente. Um vinha da antiga namorada, o outro da virtual admiradora. Avisavam que eram ambas uma só, e vinham despedir-se para sempre.

Eu sorri, pus-me a pensar na vida. Se ela não fosse tão curta, quem ficava outros sete anos era eu, a escrever num blogue textos de circunstância. Não chegariam para convencer Labão. Mas ao menos acreditava eu em feitiços da literatura. E vivia a confiar que um bom verbo opera maravilhas.

Jorge Carvalheira

Balada do ciganito dos CDs

Foge mãe, leva os CDs
Chegou o carro patrulha
Eu vi mas tu não os vês
São dois e vai haver bulha
Ao guarda chamo «cabrão»
Fixo as mãos na garganta
No meio desta emoção
A minha lágrima canta
Faço ameaças de morte
Ao que chega primeiro
Com um pouco de sorte
Apanho um juiz porreiro
«Resistência e coacção»
Diz este código penal
Mas na minha educação
Não existe bem nem mal
Foge mãe, leva os CDs
Com quinze anos de idade
No sistema português
Não há responsabilidade
Meus pais são vendedores
Na cidade em todo o lado
Todos os nossos valores
Cabem num plastificado
Onde notas com gordura
Se perfilam em parada
Quando vamos à procura
A nota está encontrada
Onde tudo o que não seja
Notas de um certo valor
Vale mais que uma Igreja
E muito mais que o amor
Fechou o «quarto juízo»
Hoje não vou ser julgado
Afinal do que eu preciso
É andar por todo o lado
Vender os CDs piratas
E ser só aquilo que sou
Sou menor, vejam as datas
O estado a que isto chegou

José do Carmo Francisco