Um Discurso de Inauguração falhado


É fado repetido: quantos mais planos cuidadosos congemino, mais doloroso se revela o trambolhão no momento decisivo. Para hoje, tinha planeado dois ou três posts magistrais, daqueles em que a economia de recursos se une ao fulgor estilístico para deixar a malta leitora muda de assombro e prenhe de iluminação espiritual (não que alguma vez tenha conseguido produzir semelhantes teofanias, mas sonhar não custa…). Pois. A semana começou logo de forma aziaga: uma intoxicação atirou com metade do familiar agregado ao tapete. E, depois de febres, hospital e tormentos vários (que incluíram ficar fechado no meio da rua em roupão, depois de receber um estafeta que os chupistas aqui do escritório me enviaram com trabalho, sem qualquer consideração pela minha enfermidade), os pendentes laborais amontoaram-se de forma terminal. Concluindo: está aí o dia da Grande Inauguração e não tenho nada que se mostre. Népia.
Assim sendo, vou ter de adaptar alguns argumentos que enderecei ao Valupi para tentar aquietar as suas naturais apreensões. Ele por certo que me desculpará a inconfidência; e terá tempo para revelar o seu lado desta estranha conspiração…


Provavelmente ninguém diria, mas eu vejo isto dos blogues mais como um manso entretém do que como um sacerdócio empenhado em converter seja quem for. Tribos de missionários zelosos já andam por aí que cheguem. Não; vejo mais esta nossa pequena farmacopeia como um clube de cavalheiros de boa linhagem e melhores maneiras, um clube onde poderemos desabafar pequenas misérias, ensaiar cometimentos futuros, ou apenas cavaquear um pouco em redor da política, da cultura, das desgraças mil do Benfica, da escassez de conservas de anchovas decentes nos nossos hipermercados. O facto de nos dedicarmos a estas minudências em público apenas acrescenta à coisa um pouco de vertigem e espanto. Digo eu.
Se já tivesse bebido o meu gin and tonic do dia, poderia cair na imodéstia de nos ver antes como uma League of Extraordinary Gentlemen de pacotilha: cada um com a sua marca de excentricidade — ou gene de monstruosidade, quiçá — cada um com um ingrediente ainda por desvendar mas certamente precioso para a fórmula comum. Uma coisa teremos a nosso favor: se esta improvável mistura provar ser de ignição impossível, o mundo não fica condenado à agonia. Nem nós. Entretanto, vai ser giro assistir às colisões e às carambolas.

Programa? Não queremos, não precisamos e não o seguiríamos; mas sei bem como gostaria de poder escrever num blogue que:
a) me surpreendesse regularmente
b) fosse capaz de ser polissémico, multifacetado, etc
c) não deixe que a política seja fronteira ou denominações de origem, antes ocasião para debater mesmo dentro do blogue
d) não se transformasse de quando em vez num ogre exigente e tirano, sempre a berrar por mais
e) juntasse malta capaz de resultar num cocktail imprevisível e talvez até explosivo
f) que desse tanto gozo a ler quanto a escrever: muito.

Palpita-me que esta Aspirina B não vai ser remédio duro de tragar. E pode bem revelar-se o “tal” blogue, capaz de nos encher as medidas. Pelo menos a nós; espero que a alguns de vós também.

5 thoughts on “Um Discurso de Inauguração falhado”

  1. «vejo mais esta nossa pequena farmacopeia como um clube de cavalheiros de boa linhagem e melhores maneiras»

    hehehehehe…

    Não tens andado muito pela blogosfera, pois não? :-D

  2. Oh pá, Jorge, estava a falar só da nossa pequena gaveta na farmácia. Mas posso bem incluir muita outra gente, a começar por ti.
    Eu sei que te deve ser difícil acreditar nass minhas boas maneiras, depois de demorar para aí um ano a enviar-te um livro prometido; mas consegui lembrar-me sozinho e tratarei para a semana de remediar a coisa. Nos entrementes, aparece por aqui, mesmo sem dores de cabeça para curar…
    :-)

  3. A dita blogosfera anda um bocadito amarga, mas a aspirina de nos der para a mastigar é amarga como o caraças!!! Isso é para tomar com muita água. Espero bem que os pontos a) e f) sobretudo sejam respeitados.
    E pronto, cá vou ter de vir a mais um blog…

  4. Ah, era só do ácido acetilsalicílico bê? OK, então. Não tinha percebido. ;)

    Quanto à minha linhagem, é mista: de um lado puro proletariado, do outro, baronatos bastardos caídos em decadência. O lado materno da minha família, no século XIX, dava um livro. E quanto às boas maneiras, tem dias, tem dias.

    Relativamente ao teu livro… hum… sabes que mais? Tenho uma ideia tão vaga que mais parece o espaço intergaláctico. Isso foi há bué, não foi? :)

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