O Fim das Bichas, de Alface

Do Expresso, 27 de Novembro de 1999

«Sonoridades reguilas»

NÃO se pode jurar que a autobiografia torne vivaz a literatura. A triste experiência é, mesmo, que a vidinha tende a inspirar a pieguice e o descomando. Mas daí, também, a surpresa que uma escrita autobiográfica com tino e medida sempre dá. Podemos ir mais longe. Nas melhores histórias a tomarem uma vida pessoal como tema, a historicidade perde importância, e funciona só já como estimulador ruído de fundo. É de certeza o caso do mais recente livro de Alface.

Pormenor de suplementar interesse: o juvenil «eu» destes contos está longe de ser o herói deles, ou só o seria pela circunstância de poder ser ele a contar hoje a história. O indivíduo em quem o relato se centra, à volta de quem se descrevem evoluções, é o avô, a mágica figura que dominou aquela infância. De uma mãe nem sombra, de um pai só apontamentos esparsos, os de alguém vergado ao peso do prestígio paterno (o do pai dele, avô do miúdo), e do mais incómodo e humilhante dos prestígios alheios: o sexual. Isso, que para esse pai era a frustração duma vida, decanta-o o neto em exultantes páginas. Aquele avô foi prendado pela natureza em dois pontos dados como invejáveis: é um sedutor a quem nenhuma mulher se nega, e dispõe de uma «exorbitante anatomia», com larga fama e, supõe-se, mas nisto a informação é escassa, o correspondente proveito.

Esse avô-herói dera já um ar de graça em Cuidado com os Rapazes (Assírio & Alvim, 1995), anterior volume de contos de João Alfacinha da Silva, que assina Alface. Também já então o venerando idoso se mostrava senhor de uma «respeitosa lubricidade». A sua atenção pelas senhoras levava-o, dizia-se, a atar um lenço «a meio» para não as magoar sem necessidade. É uma anotação de passagem, e, no volume recente, refinam as discretas artes deste neto, as de deixar o leitor com o mesmo sussurro que, sobre as proezas do garanhão, perpassava a vila natal. Mesmo com o desditoso filho a população é misericordiosa, poupando-o «às histórias mais pesadas que corriam a propósito do velhote». Tudo somado, também nós sabemos pouco, e quase só que «o avô, coitado, passou toda uma vida vigiado por maridos ciumentos, namorados susceptíveis e pais hipertensos. Todos sabiam, mas disfarçavam». Sabendo tão pouco, fica-se ainda perplexo, sem poder decidir se essa vigilância de maridos, pais e namorados era adequada. Começamos a supor que afinal não era, já que, a terem-se coisas a disfarçar, é porque calhava haver distracções. E elas tinham que ser muitas, para alimentar, num meio tão pequeno, um renome de décadas. Mas certezas não as há definitivas. Ou será só a dessas perduráveis fixações fálicas, admirativa a do neto, traumatizante a do pai, autocomplacente a do ancião.

Esta avareza de meios é, em Alface, um dos maiores aliciantes, nesta temática ou em outras. Acresce que o vemos, por vezes, tomado de uma excessiva, e muito inesperada, retracção. Em momento nenhum se nos concede um vislumbre na matéria das «aulitas de iniciação sexual» que o velhinho ministrava à miudagem local, ao «encolhido grupo que éramos», aulas pagas em espécie, neste caso cigarros. Quando, no fim do livro, as aulas se tornam práticas, é uma cena estilizada, de um bem pouco erógeno «retardando», o que resta. As damas estiradas pelo chão e sofás da casa de passe, que os imberbíssimos putos percorrem com dedos de medo, têm uma lividez felliniana (o nome do senhor aparece até por ali), onde não mora o mais leve sopro de erotismo. Se os assustados infantes não apanharam uma boa misoginia para o resto da vida, é porque o destino teve com eles caridade.

O Fim das Bichas contém outras histórias. Nenhuma delas mais esclarecedora do título, aliás. Sublinhe-se, até, a discrepância entre o que figura na capa, esse mesmo, e o mencionado na página de rosto, «O fim das bichas é o princípio das filas». A picante ambivalência evola-se então, mas nem por isso ficamos mais informados. E tudo o que ainda restasse de chiste se esboroará, ao verificar-se que o título completo é tão-somente uma das anódinas falas, e há centenas delas, apanhadas num café, e que vieram a compor a narrativa «Mesas Muito Juntas». A fala é esta: «O fim das bichas é o princípio das filas ou não é». Entende-se que houve uma suspensão, uma última dúvida. A afirmação, essa, como tantas aí reportadas, é idiota. O título quis imprimir ao livro, já desde a capa, uma sonoridade reguila.

Os melhores contos de Alface vêm sem aviso. Já em Cuidado com os Rapazes assim sucedia. «Pombinhos» ou «Tubo de Ensaio», textos primorosos, não tinham qualquer destaque. Ou só o de serem, também, os mais absurdos. No volume presente, são pequenas obras-primas os contos «Carreira de Tiro», «Da Idade» e «Anjo Negro, Céu Azul». Divertidíssimos lhes chamaríamos, não fosse o pudor de dizê-lo do primeiro. «Carreira de Tiro» é a descrição metódica e arrepiante do crime, o abate a mira telescópica de drogados do Casal Ventoso, técnica possivelmente aprendida (a narrativa, entenda-se) com Rubem Fonseca, o ficcionista brasileiro que fornece a epígrafe ao livro, e que pudera, nisso e no resto, ser-nos um mais atendido mestre. Mas o estilo é, iniludível, o de Alface. Sorrateiro, incisivo, cortante. Como no passo em que a agente imobiliária se afasta com pezinhos de lã, reluzindo de um negócio em conta. É ele quem fala: «Comove, a desonestidade. A mim comove. O verme do embuste torna-se espectáculo dos mais doces. Outros apreciarão um crepúsculo arrancado a entardecer bovino. Eu não. Eu adoro passar por parvo.» É uma pilhéria de nível, com ecos do melhor que a nossa prosa andou fazendo nos últimos quinze anos, divertida com a sombra que fazia à sisudez ritualizante, bem-aventurada, dos nossos «best-sellers».

A melhor história do livro, «Anjo Negro, Céu Azul», é uma narrativa avassaladora. Sendo breve, não enche menos as medidas. Dura que é, rejeita efeitos piegas. No Cais do Sodré, num bar «cheio de fumo e solidão», Matilde encontra um negro, tão perdido ali como ela, e perdido o vê sair, desistente de tudo. Tempos se passam. Há-de reencontrá-lo, na EN125, no Algarve, olhando um carro espatifado, ele sangrando, a mulher e os filhos mortos. «As rodas ainda mexiam, sonâmbulas», aponta Alface. Mas um autor inventivo achará meios de deixar o mundo menos desfeito. Este achou.

fv

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *