«Um envelope individual»

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Apetecia-me há já algum tempo dizer isto: encontrei um texto de GMT (habituem-se, Gonçalo M. Tavares) de que gostei. Estou a ser forreta. Gostei muito. Algures nos alçapões deste blogue, o crítico (ele diz que não, mas é patente modéstia) Jagudi chama a GMT «críptico». É ser generoso. Por mim, não tenho tempo de vida – nem disposição – para ter as leituras que me permitissem achar prazer em GMT. No GMT habitual.

Mas há um outro. E esse escreveu, há uns meses, «Água, cão, cavalo, cabeça», que a Caminho publicou. São contos. Curtos. Alguns curtíssimos, e é assim que eles são bons (lembrem-se de Mário-Henrique Leiria, ou do José António Franco, ou do Paulo Kellerman, ou do nosso Jorge Carvalheira) e é assim que eles são difíceis.

Aqui vai um. Integral. Desse mesmo livrinho (o «lay-out» original é mais agradável à vista). Se a Caminho não gostar, mande a continha, sim? Se o GMT não gostar, tenha paciência ou aprenda a escrever maus contos.

Aprecie-se o estudado desmazelo da expressão, a estudada trivialidade da narrativa. Isto é uma arte. Só convém não exagerar, porque é uma arte difícil. Mas o resultado, aqui, é precioso. Chama-se a coisa

«Um envelope individual»

O exame electroencefalográfico tem doze registos que podem ser mono ou bipolares. Os exames captam os estímulos eléctricos de cada uma das áreas do cérebro; depois tiram-se conclusões.
Em repouso, o ritmo eléctrico do cérebro é diferente.

É necessário acreditar na verdade e não acreditar na mentira.
Uma escritora utiliza esta expressão: ficar individual. Uma pessoa que numa conversa, de repente, fica individual, é alguém que entra em si próprio, como se cada um fosse dois e pudesse o seu 2.° mergulhar no primeiro e fechar-se.
Existem momentos em que somos sociais, disponíveis; e existem momentos em que somos individuais.
No café detestam que eu leve livros e os leia, e que escreva. Aceitam e gostam de alguém que leva um jornal e lê durante horas, sentado. É uma questão de não se sentirem estúpidos, mas são estúpidos.
No fundo era apenas para contar a história de alguém que tinha um electroencefalograma para levantar num laboratório, mas morreu às duas horas da tarde, e o exame só estava pronto às três horas da tarde. Morreu de um ataque que vem de dentro da cabeça, mas os médicos têm outros termos. E o resultado do exame ficou anos no laboratório porque não foi levantado e no laboratório não são obrigados a distinguir quem morre de quem se atrasa ou se esquece.
Na organização de um dos anos posteriores, esse exame foi rasgado e deitado ao lixo, sem sequer ser aberto.

O exame electroencefalográfico, já o disse no início, tem doze registos, registos que podem ser mono ou bipolares. Os exames captam os estímulos eléctricos de cada uma das áreas do cérebro e depois tiram-se conclusões.
Naquele caso a conclusão era que o cérebro estava bem. Tanto em esforço como em repouso. E doze registos são sempre doze registos, não é um só.

Gonçalo M. Tavares

2 thoughts on “«Um envelope individual»”

  1. É bom sim senhor. é bom de uma forma esgarçada mas só aparentemente pobre. E o esboço de história fica depois a adensar-se, dentro de nós.

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