Arquivo da Categoria: VISITAS ANTIGAS:

Vinte Linhas 798

Aspirina B – um inventário e uma despedida

Na vida real, ao contrário dos filmes, os maus ganham sempre. Bastou um paranóico para transformar a caixa de comentários do Aspirina B numa pocilga. O cheiro é insuportável.

Mas comecemos pelo lado bom. Quando há um ano a minha casa foi assaltada por uma quadrilha de profissionais, foi graças ao Aspirina B que foi possível recuperar os poemas, as notas de leitura e as crónica lá publicadas. Os gatunos roubaram o computador mas não os conteúdos do Blog. Convidado pelo Fernando Venâncio, seguiu-se o apoio da Susana Campos e logo a seguir o Valupi com uma paciência sem fim para os meus textos e imagens que colocou «on line» ao longos destes últimos anos.

Agora vou sair pois o paranóico não desiste e vai torpedeando as outras caixas de comentários já que as minhas estão bloqueadas. Tenho três filhos e três netos, por isso não faz sentido eu continuar a sofrer com um paranóico a inverter as verdades da minha vida. Por exemplo – Sou natural de Santa Catarina e fiz o exame da terceira classe em Abril de 1961 para fazer o da quarta em Julho desse ano e o de admissão logo em Agosto. Entretanto ele, o paranóico, vai debitando tudo ao contrário.

Agora vai ficar sozinho a inverter verdades à sua inteira vontade e capricho. Pode inverter tudo o que quiser. Eu trabalhei com pessoas como Óscar Lopes, Fausto Lopo de Carvalho, David Mourão-Ferreira, Orlando da Costa, Jacinto do Prado Coelho, Carlos Eurico da Costa, Jacinto Baptista, Carlos Pinhão, Carlos Miranda, Vítor Santos, Homero Serpa, Aurélio Márcio, Wanda Ramos, José Cardoso Pires, Mário Ventura, Dinis Machado e Olga Gonçalves – por exemplo.

Obrigado a todos; em especial Fernando, Susana e Valupi. Obrigado aos leitores. Até sempre.

Vinte Linhas 797

Os passos na manhã do Corpo de Deus e a memória do Mar da Palha

Alguém perto de mim pisa o empedrado da calçada dita portuguesa. São passos na manhã do feriado da Festa do Corpo de Deus, dizem as vozes que este é o último. Talvez por isso a procissão saída da Sé de Lisboa às cinco da tarde parecia não ter fim nas ruas da Baixa.

O único interesse de quem circula é o passeio no miradouro em frente ao Castelo de São Jorge. À direita, o Rio Tejo e o mesmo Mar da Palha onde há 55 anos as barcaças com o lixo doméstico dos lisboetas eram despejadas no Porto da Lama. Carroças lentas levavam esse material a servir de adubo pelos campos do Afonsoeiro, Jardia, Alto Estanqueiro e Atalaia. O Porto da Lama ficava no Montijo, logo a seguir e bem perto do Cais dos Vapores.

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Vinte Linhas 796

O menino, o cão de pilhas, as molas de madeira e o azulejo

O cão de pilhas assusta o menino de dez meses. Seu ruído chinês agride o ambiente com a luz verde dos olhos e a simulação das quatro patas em movimento. O cão de pilhas não anda mas assusta o menino porque os seus olhos e todo o rosto são o espelho de uma negação. Ele não quer nada com o cão de pilhas. Teme o ladrar mecânico, o verde dos olhos e os movimentos sincopados. Vendido num passeio do Rossio, o cão de pilhas fica a meio caminho entre o brinquedo e o lixo. As molas da roupa são um brinquedo de madeira mas esse brinquedo o menino de dez meses não teme. Recebe o cesto de verga cheio dessas molas antigas (do tempo de seu pai bebé) e brinca sem se cansar.

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Vinte Linhas 795

Fonseca e Costa barbaramente agredido ou o BA sem rei nem Roque

Já nem o nosso padroeiro São Roque nos vale a nós, habitantes do Bairro Alto – no meu caso desde 1976. A miserável agressão e assalto de que foi vítima o cineasta José Fonseca e Costa quando se dirigia para sua casa à noite no passado sábado prova que os delinquentes sentem no ar um cheiro de impunidade. O Bairro Alto é o único lugar de Lisboa onde a Lei do Ruído não é cumprida, por exemplo. Outro dia um vizinho nosso na Rua das Salgadeiras viu uma equipa que veio medir os decibéis de um «bar» a não ter nada para registar porque nessa noite por acaso o ruído estava normal. Foi uma coincidência, um acaso. O Bairro Alto é o único lugar onde a ASAE não actua. Ninguém sabe porquê mas é a verdade – não actua. Viver aqui é como ter os pés em cima de uma botija de gás. Nunca se sabe quando ela vai explodir.

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Vinte Linhas 794

Lourinhã – Livros a Oeste em festa até 7 de Junho

Na Biblioteca Municipal da Lourinhã (http://livrosaoeste.blogspot.com) está a decorrer uma Festa do Livro (entre as 10 e as 20 horas) até ao dia 7 de Junho. Participei na festa com a apresentação do livro «Os sítios sem resposta» (Porto Editora) de Joel Neto no dia 2 (sábado) ao fim da tarde. Antes do jantar João Morales moderou uma conversa fascinante com Mário Zambujal, Afonso Cruz e João Ricardo Pedro. Conheço Mário Zambujal desde 1978 (Diário Popular) e gostei de conhecer os mais novos – João Ricardo Pedro e Afonso Cruz. Até ao dia 7 vão estar outros escritores na Lourinhã – entre eles Rui Zink, Pedro Vieira e José Norton.

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Aspirina B

A partir de hoje os meus posts passam a não receber comentários. O principal nesta decisão é defender o autor e alguns comentadores de uma sucessão tentada de insultos completamente deslocados, despropositados e desproporcionados. Nem o facto de no mundo da Blogosfera surgiram casos similares de tentativa de ofensas gratuita e impune, desculpa a sua brutalidade e a responsabilidade de quem os avança «on line». Também existem Blogs nos quais os comentários não são aceites e esses espaços não perderam leitores. A paciência tem limites. Obrigado pela vossa compreensão.

Vinte Linhas 793

Os campinos do campo não se curvam como os mordomos de palácio

Outro dia, enquanto estive num consultório médico à espera de ser atendido entre as 11h 45m e as 14h, deu para ver muitas (demasiadas) vezes um anúncio que mostra um cacilheiro a caminho do Terreiro do Paço e o concerto do Toni qualquer coisa. Pois o anúncio tem um pormenor repugnante – mostra três campinos cumprimentando quem chega ao cacilheiro com uma vénia que só pode ser copiada de um mordomo de palácio e que nada tem a ver com os campinos – que são pessoas do campo.

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Um livro por semana 289

«Autismo» de Valério Romão

Valério Romão (n. 1974) é tradutor (Beckett e Virgínia Woolf), dramaturgo (autor de Posse e A mala) e contista (revistas Magma e Construções Portuárias) estreando-se no romance com esta obra de 353 páginas na qual o autismo é o protagonista. Rogério, Marta e Henrique (pai, mãe e filho) vivem todos esta doença: «E não consigo sair disto, a desordem, as mãos na boca, os saltos no mesmo sítio, o olhar vazio, a confusão, o silêncio, os guinchos, toda a parafernália que é o fogo-de-artifício pelo qual o autismo se anuncia e esconde a criança.»

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Vinte Linhas 792

Meditação breve para dois telhados de Lisboa

Uma obra ilegal tapou-me a visão do Rio Tejo em frente à janela de onde foi tirada esta fotografia. Por sua vez a neblina não permite ver a Serra da Arrábida lá no fundo onde às vezes os vidros dos automóveis brilham como faíscas instantâneas perante os raios de sol.

A casa onde vivo desde 1976 e que é minha desde 2005, dá para um pátio antigo com um limoeiro a que ninguém liga e com os restos de uma oficina de tipografia onde outrora se imprimiu «O Mosquito» e outros jornais infanto-juvenis. Salvo erro, «O Senhor Doutor» e «O Grão de Bico», por exemplo.

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Joel Neto – «Os sítios sem resposta» ou o estranho lugar do delírio e da alucinação

Este livro de Joel Neto («Os sítios sem resposta») parte de um absurdo: uma determinada pessoa, Miguel Barcelos de seu nome, dois casamentos falhados no activo, empregado de uma seguradora, sportinguista desde a infância, resolve inopinadamente mudar de clube e passa a ser benfiquista. Com o fanatismo habitual dos recém-convertidos, o herói desta história passa a ler A BOLA, a ir ao Seixal ver os treinos, a jantar nos restaurantes do Estádio do SLB. O absurdo vai crescendo, primeiro entre os atónitos colegas de trabalho, logo a seguir na família onde a mãe lhe coloca pela frente a grande adversativa: «Tu nunca mais, na minha casa, voltes a dizer isso que acabaste de dizer. E, se estiveres a pensar falar disso com o teu pai, é melhor pensar duas vezes que é para a gente não se chatear a sério.»

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Um livro por semana 288

«África – frente e verso» de Urbano Bettencourt

Autor de 6 volumes de ensaio e de 9 livros de poesia e narrativa, Urbano Bettencourt (n. 1949) assina neste seu 16º título uma revisitação de África onde cumpriu uma comissão de serviço entre 1972 e 1974. O título propõe uma dupla inscrição mas nem no Natal o poema sugere alegria: «sem nozes nem lâmpadas / sem presépio nem padres finalmente / o natal escorre de saudade pelos olhos do soldado / agarrado à breda remuniciada.»

O tom geral é a raiz de mágoa, título do primeiro livro do autor em 1972: «o Pedro morreu com 22 anos, tinha x metros de altura, pesava n quilos, a mina arrancou-lhe as pernas, procurei os restos e reuni-os debaixo de um mangueiro, (…) eu bebi whisky puro toda a tarde.» A alma e o corpo ocupam lugares diferentes: «Do corpo jamais se soube o que foi feito (…) mas a alma, essa mesma que foi enterrada junto ao poilão, é que continua multiplicada e enorme por dentro das noites a assombrar as bolanhas e as florestas, os riso e os poços.»

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As três janelas do fotógrafo Manuel Neto

Aconteceu uma vida anterior

Quando alguém se despediu

Nas três janelas desta casa.

Houve um primo na Índia

Um tio esteve nos Açores

E o pai foi para Cabo Verde.

O outro tio não foi para Macau

Mas até essa dúvida militar

Teve nas janelas testemunhas.

A avó rezou o terço todos os dias

E desmaiou no sol da missa campal

Quando o padre falou nos soldados.

Mas tudo isso foi muito antes do fim

Quando nesta casa se começou

A saber qual a gramática da ruína.

Depois todas as rendas se rasgaram

Como as redes da praia apodrecem

No canto das areias e do silêncio.

Aos poucos todos partiram de casa

Levando a vida fechada em malas

E sem tempo para dizer adeus.

A chuva fez o resto com o vento

E ninguém percebe a vida antiga

O frémito das vozes e dos dias.

Nesta casa só as janelas dizem

O inventário do tempo passado

E o balanço dos dias do presente.

A parede perdeu a sua pele antiga

Do tempo em que a casa respirou

E a vida era dizer adeus nas janelas.

Vinte Linhas 790

Os 153 peixes de São Pedro

No Mar de Tiberíades ainda hoje se pescam esses peixes, os chamados desde sempre «peixes de São Pedro» que parecem vivos nas fotografias. Diz o Evangelho segundo São João que o grupo de Pedro não pescou nada numa noite e que, de manhã, Jesus lhes perguntou: «Rapazes, tendes aí alguma coisa para comer?»

Como não tinham nada, Jesus mandou que lançassem a rede para a direita da barca. Pouco tempo depois a rede veio cheia com 153 enormes peixes e, mesmo assim, não se rompeu. Ao saltarem para terra os pescadores viram umas brasas vivas com um só peixe e ao lado um pão. Então Jesus disse: «Vinde e comei!»

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Vinte Linhas 791

Nagashima – os cheiros de Lisboa na Rua Cecílio de Sousa, 94

Minoru Nagashima (n. 1944) veio a Portugal para a EXPO 98 e já não voltou ao seu Japão Natal. Fixou-se no Príncipe Real tornando-se aos poucos o pintor residente do antigo jardim hoje semi-destruído pela loucura dos vereadores da CML. A mostra da sua pintura mais recente a óleo integra 31 quadros de pequeno, médio e grande formato e está patente até ao dia 2 de Junho próximo na Rua Cecílio de Sousa nº 94 entre as 15 e as 21 horas. Além dos 31 quadros na galeria da Junta de Freguesia das Mercês, Nagashima tem 8 peças no quiosque-esplanada do senhor Oliveira. Está hoje dia 26 de Maio e segunda-feira próximo dia 28 pois existe uma feira de velharias e novidades neste espaço no último sábado e na última segunda-feira de cada mês. Nagashima foi turista mas converteu-se em pintor amador da nossa Cidade. Tanto pinta o Príncipe Real como o Largo de Camões ou São Tomé. Tanto regista o elevador da Glória como Alfama ou São Pedro de Alcântara. Demora-se no elevador da Bica, no Rossio e na Rua da Palmeira. Viaja pelas Portas do Sol, pelo Largo do Carmo ou pela Rua dos Jasmim. Passa tardes de trabalho na Rua D. Pedro V, no Campo Pequeno ou nas Escadinhas do Duque.

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Vinte Linhas 789

Da Sociedade Portuguesa de Escritores à Associação Portuguesa de Escritores

Ao arrumar documentos antigos deparo com dois relatórios da APE nos quais se referem as minhas intervenções em júris do Prémio Revelação de Poesia em 1986 e 1991.Em 1986 o prémio foi para Luís Alves da Costa («Fragmentos») e Avelino de Sousa («Nostalgia») tendo o júri sido constituído por Fiama Hasse Pais Brandão, por Fernando J.B. Martinho e por mim. Em 1991 o vencedor entre 55 concorrentes foi Nicolau Saião com «Os objectos inquietantes» e o júri integrou Cecília Barreira e Luís de Miranda Rocha além de mim.

Mas a APE não nasceu do nada; ela herdou o passado da SPE, brutalmente destruída na noite de 21 de Maio de 1965 por «desconhecidos» apoiados pela PIDE. Um júri constituído por Alexandre Pinheiro Torres, Augusto Abelaira, Fernanda Botelho, João Gaspar Simões e Manuel da Fonseca premiou o livro «Luuanda» de Luandino Vieira. O governo fascista não gostou de saber o nome do vencedor do Grande Prémio de Novelística da SPE. Daí um assalto que o «Diário de Notícias» em 22 de Maio de 1965 refere assim: «Todo o mobiliário foi completamente destruído. Portas e janelas danificadas. Candeeiros e molduras partidos. Máquinas de escrever e ficheiros inutilizados. Os prejuízos são elevadíssimos». Só em 6 de Julho de 1973 tomaram posse os corpos sociais da nova APE com José Gomes Ferreira, Sophia de Mello Breyner Andresen e Faure da Rosa, respectivamente, a presidir à Direcção, à MAG e ao Conselho Fiscal. Eles sucediam aos pioneiros de 1954 – António Sérgio, Aquilino Ribeiro e João de Barros.

Passo todos os dias vária vezes pela Rua da Escola Politécnica e nunca me esqueço do que aquele primeiro andar do número 20 tem para contar. Mesmo em silêncio a memória resiste.

Vinte Linhas 788

Destaque pelas piores razões – a Linha do Oeste não é em Abrantes

O jornal gratuito «Destak» apresenta hoje dia 23-5-2012na página 3 a seguinte notícia: «Colisão na Linha do Oeste faz um morto – Uma mulher encontrava-se ontem hospitalizada em estado estável, assim como duas crianças de quatro e dois anos que seguiam no automóvel que colidiu com uma máquina de inspecção dos carris numa passagem de nível, perto de Abrantes. Recorde-se que do acidente na Linha do Oeste resultou ainda um morto».

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Um livro por semana 287

«Fernando Pessoa uma quase-autobiografia» de José Paulo Cavalcanti Filho

O autor (n. 1948) conheceu Fernando Pessoa pela voz de João Villaret em 1966 e calcula que os 30 mil papéis do poeta davam para 60 livros de 500 páginas. Mas não se intimidou no seu projecto: «o livro não é o que Pessoa disse, ao tempo em que o disse; é o que quero dizer, por palavras dele». Com 710 páginas para ler e descobrir, fica um excerto como convite à leitura:

«Dois factos marcaram a vida de Pessoa. Revelou-se um político, quando, no início do Estado Novo português, em numerosos textos, apoiou um governo de direita, angariando a antipatia dos intelectuais comprometidos com a democracia. Depois, rebelou-se contra Salazar, para ganhar, também, a reação dos conservadores de todos os costados. O outro facto está ligado aos costumes, porque, em mais de uma ocasião, se pôs ao lado de poetas notoriamente homossexuais. Sem contar com a defesa que fez da escravatura, ou as críticas ao comunismo e ao cristianismo. Provavelmente por conta dessas atitudes nada convencionais, foi, durante bastante tempo, sempre mais estimado fora que dentro de Portugal. Ou, talvez, como em conversa me disse Teresa Rita Lopes, isso tenha acontecido por Portugal ser um país pequenino, onde os intelectuais se tocam nos cotovelos e todos têm inveja uns dos outros. Apenas refiro esses factos, sem ânimo (ou razão) para análises detalhadas, mas observo que talvez não por acaso, apenas o primeiro dos seus biógrafos, João Gaspar Simões, nasceu em Portugal – os demais são, na sequência dos livros, um espanhol (Crespo), um francês (Bréchon), um americano (Zenith). Certo é que só com o tempo e uma melhor compreensão do contexto histórico da sua presença, se abrem as portas, entre os seus também, para a admiração sem limites que merece. No Brasil, sobretudo, onde revela um prestígio não igualado por nenhum outro poeta português».

(Editora: Porto Editora, Capa: Almada Negreiros, Design: Leonardo Iaccarino)

Olhar o monte

(sobre Fotografia de Álvaro Carvalheiro)

Vejo o monte quando olho para ti.
Tu não sabes mas o teu olhar é uma porta aberta, um convite, uma sugestão de caminho. Olho-te na cidade e penso logo no campo, penso logo na brancura das casas, no azul das barras, no castanho das telhas.
Cheguei aqui cansado, vinha a transpirar, os pés pesavam toneladas e, morto de sede, só descansei quando me deste um copo de água tirada de uma bilha no louceiro. A única música que aqui chega é a do vento, capaz de secar a roupa estendida e as tuas lágrimas.

Vejo o monte quando olho para ti.
Vejo nos teus passos o prenúncio do movimento. És tu que seguras o alguidar da roupa que vais estender entre a última casa e a primeira árvore. Tal como foste tu a sacudir o sono e a trazer à vida do monte a sua velocidade.

Há uma ordem, uma perfeita sintonia de aromas que mistura de modo sábio o odor das flores silvestres aqui à volta e o lento cozinhado por ti decidido no espaço da cozinha onde muitas vezes preparar a refeição é mais do que arte; é uma ciência.

Vejo o monte quando olho para ti.
Habito o espaço sentimental desta imagem por ti povoada. É um dia luminoso, o monte repousa e apenas o esvoaçar da roupa que tu estendeste lembra que vive aqui alguém. As tarefas quotidianas ocupam os seus locatários. Uma humidade difícil de medir percorre e liga a ternura dos teus olhos à respiração da terra.

Vejo o monte quando olho para ti.

Vinte Linhas 787

Saudação a Marta em 19 de Maio nas montanhas azuis

Há no teu olhar a memória viva da luz do dia em que nasceste. Tal como acontece numa ilha pequena, nesse dia em 1985 choveu e fez sol com um breve intervalo. Havia no ar o prenúncio de trovoadas, as trovoadas de Maio que fazem rasgar o nosso firmamento.

Em 1992 os corredores do Hospital de Santa Maria pareciam não ter fim. A tua voz perdeu-se esmagada pelo silêncio da infecção, pela confusão dos médicos, pela balbúrdia do bloco operatório. Eu acariciava os teus dedos com a minha mão direita e com a esquerda segurava a mão dum menino, o Daniel, operado como tu de urgência mas a mãe dele precisava de trabalhar e ia-se embora cedo com as lágrimas nos olhos.

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Canção da pequena camponesa

Ó pequena camponesa / Nos teus olhos de humidade

É que eu percebo a beleza / Que tu trazes à cidade.

Ó pequena camponesa / Desterrada do teu mundo

Na tua voz a certeza / Dum som perfeito e profundo.

Que essa voz traz ao espaço / Com tabaco e seu cheiro

Com a cana e o melaço / Onde o timbre é verdadeiro.

Onde os registos da voz / ascendem ao lugar cantado

Na rua de todos nós / O som chega a todo o lado.

Na rua da nossa cidade / Onde vens falar à janela

A tua voz é verdade / Na vida e não na novela.

Que a vida não é cinema / Nem a fala é literatura

Tudo entra num esquema / Só a tua voz perdura.