Tempos de guerra

No tempo da guerra é que foi mesmo de mandar carouço. Uma pessoa nem sequer podia chamar seu àquilo que era seu, que vinham fiscais ver o que cada um tinha de trigo e de milho, e ficava um tanto para os donos e outro tanto para o governo, para levar para quem não tinha. Até para levar a farinha dum concelho para outro era preciso autorizo. O José Pimentel, que era carroceiro, foi um dia apanhado por um polícia, vinha da cidade com um carregamento de farinha, o polícia quis ver a licença, ele não tinha, aquilo era farinha para matar a fome a muita gente cá na Maia, o José, que era um rapaz forte, pegou no polícia a aboiou-o para dentro dum tanque de água e veio-se embora depressa, antes que o polícia lhe desse na cabeça de vir atrás dele mesmo todo molhado.
Uma vez foram a casa do Manuel Bispo, que era bom homem, um dia foi à terra e viu um velhote com um espeto a puxar umas batatinhas por um buraco da porta do barraco, e sabe o que é que ele fez? Escondeu-se entre as canas para o velhote não ver que tinha sido apanhado a roubar. E o filho, o Adelino, fez coisa parecida, que um dia chegou à terra e viu uma mulherzinha a rapar com os dedos para desenterrar umas batatinhas, também se escondeu entre as canas para a mulher não saber que tinha sido vista. Pois os fiscais foram a casa do Manuel Bispo, que já mal se levantava da cama e estava meio tarouco, os fiscais queriam ver o trigo que eles tinham, a mulher, que era muito mais nova, e os filhos tinham escondido umas sacas no barraco, eles contaram as sacas que viram e fizeram os quinhões, mas o Manuel Bispo lá da cama começou a dizer que havia as outras no barraco. Era uma casa de família, precisavam daquele trigo para si, a senhora Maria dos Anjos lá se desenrascou disfarçando com o pouco juízo do marido.
A luz era uma aflição, não havia petróleo, era um maldito dum azeite de gata, da gordura dum peixe que chamam peixe-gata, enjoava que revirava a casa toda e embrulhava as tripas, e mesmo assim era preciso tapar as janelas com papéis para não se ver a luz, por causa dos submarinos alemães, os soldados faziam a ronda na freguesia e, se viam uma greta de luz nalguma janela, batiam à porta e diziam muito delicados que era preciso tapar melhor. Foi com uma luz dessas que o meu Carlos, que é da sua idade, nasceu numa noite de temporal medonho.
Os soldados de Lisboa eram gente boa, não há muitas razões de queixa, mas alguns fizeram patifarias que Deus lhes perdoe. A pobre da Isabel da Luísa, que era uma rapariga bonita mas com pouco tarelo, foi enganada por um, que se foi embora sem se importar com o que lhe tinha feito, ela teve o filho no regato da cama, no quarto havia três camas, uma era do pai e da mãe, outra dos irmãos e outra das irmãs, e ela pariu mesmo ali, calada como um nabo, ninguém deu por nada, foi só a irmã que a ajudou.
Há gente que parece que pensa que a gente eram todos tolos naquele tempo, então como é que se passava fome com tanto que Nosso Senhor dá, pois é, mas às vezes não dava, ou tirava o que parecia que ia dar com algum temporal que estraçalhava o milho, as batatas ou as favas, ou com aguaria que nunca mais parava que até o trigo grelava nas terras. E não havia os adubos que há agora, a gente botava nas terras limos que vinham depois das tempestades no mar, já se sabia quando é que eles iam dar à costa, o pessoal ia logo de manhãzinha para o calhau, faziam os seus quinhões o mais que podiam, e depois era acartá-los escorrendo pelas costas abaixo. A gente até juntava pelo caminho as porcarias que os animais faziam, e, já se sabe, não se desperdiçava uma pinga de urina, para as couves. Mas havia alguns que nem sequer eram donos do seu mijo, desculpe-me a palavra, tinham de o guardar num talhão, e depois o senhor Bastião mandava buscar nuns bidões numa carroça, para pôr nas bananeiras. Eram trabalhadores dele, e se queriam ter trabalho tinham que lhe dar não era só o suor, era o mijo também.

5 thoughts on “Tempos de guerra”

  1. Ao ler o que aqui estava escrito, lembrei-me das narrações do meu pai sobre esse tempo de guerra.Uma vez eu fiz uma birrinha e bati o pé, porque não queria comer peixe”não quero essa porcaria”.Chorei,chorei, engasguei-me e não comi.O meu pai não falou comigo durante o resto do dia. À noite,depois de jantar,obrigou-me logo a ir para a cama. Eu disse que era cedo. Ele disse”tens cinco minutos para estares despida e deitada”. E eu conhecia aquele tom de voz.A coisa estava mesmo séria! Depois de estar na cama, chamou a minha irmã, sentou-a ao colo dele “é a hora de vos contar uma história. E começou o seu rosário de menino de tempo de guerra cheio de fome. Eu tinha o coração apertadinho e derreti os remorsos em lágrimas E contou tudo o que contaste. Mesmo tudo:o esconder dos alimentos, as buscas da polícia,a comida racionada, enfim um rol de horrores. Até ratos se apanhavam para enganar a fome.Depois deu-me um beijo e obrigou-me a repetir” eu nunca mais digo porcaria de comida”, enquanto me cobria de beijos.
    Obrigada, Daniel, por me teres trazido o meu pai e eu ter sido menina de novo.

  2. Não, sério, está um bom retrato e bom documento sobre a “neutralidade” que o regime do tempo usou com inteligência politica para convencer muita gente que o António não era só de tabuadas de finanças que percebia.

    Por outro lado, Daniel, também é verdade que se os habitantes de S. Miguel tivessem vivido durante esse periodo numa daquelas ilhas gregas, as histórias ainda seriam mais dramáticas. Ou talvez não, havia raparigas que gostavam muito de conversar com os capitães Corellis.

  3. Lia, uma vez mais a história é a mesma numa geografia diferente.
    Chico, não era preciso ir tão longe. Em Espanha foi ainda pior do que na Grécia. E sem necessidade de uma guerra feita por outros. Essa separação entre o António e o regime é que não me parece muito correcta. O António era o regime, nesse tempo. Só mais tarde é que o regime ganhou uma certa autonomia, engolindo o próprio que o criara.

  4. Daniel,

    Se falas da Espanha de durante a II Guerra Mundial, pois, ter-se-á passado bastante, especialmente com as prisões cheias de “republicanos”, comunistas e anarquistas, e a caça aos mesmos que ainda continuou até aos anos sessenta, estou a lembrar-me do fuzilamento do Grimau. Mas faltava-lhe a interessante característica de país ocupado (não estou a pensar em Tarragona) por tropa estrangeira, caso da Grécia. Se falas dos tempos da guerra civil, pois sim. Pior que isso, antes da Guerra, só as grandes fomes da Ucrânia.

    Não quiz separar nada. Regimes dictatoriais têm sempre figuras carismáticas à cabeça. Acredita que havia gajos mais salazaristas que o próprio Salazar e outros tão salazaristas como ele, e outros menos mas manejáveis, em milhares de posiões de responsabilidade. Esse conjunto era o regime. E se o homem não tivesse caído da cadeira o mais certo era nunca termos tido a nossa Revolução dos Cravos. Enfim, há quem tenha outras maneiras de ver.

  5. Nada a acrescentar. Conheço casos concretos em que Salazar era posto à margem do que se passava à sua volta. D. Sebastião de Resende, Bispo da Beira, era considerado “comunista” porque se opunha à guerra. Escreveu seis cartas a Salazar, e não obteve resposta de nenhuma. Pediu-lhe uma audiência. Esteve na casa dos Combonianos, na Calçada Engº. Miguel Pais, muito perto de S. Bento. A casa estava constantemente a ser rondada por elementos da PIDE, em jipes. Quando D. Sebastião saiu para a entrevista com Salazar, foi seguido pelos mesmos. Começou a conversa dizendo a Salazar que ele era “censurado”, pois que se tivesse recebido alguma das seis cartas ter-lhe-ia respondido, de certeza. Salazar confirmou que as não recebera. D. Sebastiãp disse a Salazar que, se era criminoso, que fosse posto na cadeia; se não era, Portugal não era tão rico que pudesse fazer guarda a um cidadão com quinze (ele chegou a contar quinze) homens. Quando saiu da entrevista, já ninguém o seguia.

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