A FANTÁSTICA HISTÓRIA DE RITA GORDA

(Do livro Stories Gandma Never Told, de Sue Fagalde Lick, escritora americana de ascendência açoriana)
– Tradução de Daniel de Sá –

 

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Rita da Silva não era a noiva que Frank Lewis desejara. Quando ele deixou o Faial a caminho dos Estados Unidos, prometeu a sua irmã Carolina que a chamaria logo que tivesse dinheiro suficiente. Os anos passaram sem uma palavra de Frank. Cansada de esperar, Carolina emigrou por sua conta e risco e casou-se com outro.
Inesperadamente, Frank mandou cinquenta dólares para pagar a viagem da noiva para os Estados Unidos. A resposta foi a de que ela estava casada. A única que restava era a irmã chamada “Rita Gorda”. Com 1,77m de altura e 90 kg de peso, essa última irmã solteira não era bonita, mas, como Frank tinha enviado já o dinheiro, concordou em que ela deveria ir.
A viagem foi um horror. No barco, Rita esteve sempre enjoada e custou-lhe muito arranjar um lugar reservado que servisse de quarto de banho. A família prevenira-a para não comer a comida de bordo porque o barco era muito sujo, e assim ela alimentou-se de pedacinhos de pão e queijo que levara de casa. Só falava Português, e não teve ninguém com quem conversar durante a longa jornada. A sua única companhia era um livrinho de orações.
Desembarcou em Boston, mas tinha ainda um longo caminho a percorrer. A etiqueta da mala pequenina que era toda a sua bagagem dizia Frisco, USA. Agora ia dirigir-se para Ventura, Califórnia, centenas de milhas a sul, mas era sempre o mesmo caminho para os viajantes de Leste. A única coisa que conduzia Rita pelo país fora era o bilhete pregado no casaco, que explicava quem ela era e para onde ia. Quando alguém lhe perguntava, apenas o mostrava. Teve medo também de comer no comboio. Apesar de os revisores terem sido simpáticos quando lhe ofereciam das suas sanduíches, ela pensou que estavam a tentar envenená-la. “Não comas nada, se não souberes o que é”, havia sido prevenida muitas vezes. Sacudia a cabeça e dizia: “No, no, no.” Os desconcertados revisores insistiam: “É bom. Come.” Mas Rita continuava a negar.

Comida de estranhos não foi a única perturbação da viagem. O comboio parou em Chicago antes da mudança para um linha que atravessaria o sul dos Estados Unidos. Os passageiros deveriam sair, mas Rita desesperadamente teimava em ir para a sala de espera. Agarrando-se à mala e andando cuidadosamente com o primeiro par de sapatos que tivera, apressou-se a ir para o depósito de bagagens. Aí, um negro que tocava banjo “saltou na sua direcção”, contava aos filhos mais tarde. “Ele era como um macaco pequeno.” Aos ouvidos de hoje, isto soa como um terrível preconceito, mas Rita nunca vira um negro. Estava tão assustada que molhou as cuecas.
Quando finalmente saiu do quarto de banho, agarrando ainda as suas coisas com medo de ser roubada, não sabia que caminho tomar para voltar ao comboio. Ficou de pé chorando, aterrorizada por poder ser deixada atrás. O comboio estava prestes a partir quando o revisor reconheceu a portuguesa perdida e a trouxe de volta.
Certamente que as suas tribulações deveriam ter acabado quando alcançou a Califórnia, pensou ela, mas ia apanhar outra desilusão. A grande e humilde mulher foi recebida por um homem pequeno com um casaco de couro. Tinha 1,65m e ficava-lhe pouco acima do ombro. Fumava e conduzia uma mota. Ela olhou-o de relance e explodiu em lágrimas. Mas não tinha escolha. Ele pagara-lhe para vir, portanto tinha de tornar-se sua mulher.
Tal como muitas mulheres desse tempo, Rita não se casou por amor, mas por uma casa e estabilidade nos Estados Unidos. Chegou a dois de Fevereiro de 1917, e casou-se com Frank a dezasseis de Abril. O primeiro filho nasceu no mês de Fevereiro seguinte, seguindo-se outros três. “Ela dizia-me que lhe parecia que ficar grávida era a única maneira de poder sobreviver com aquele homem de quem não gostava”, disse a sua neta, Judy Lewis Johnson.
Rita tivera uma vida dura no Faial. Crescera descalça numa casinha de chão sujo, cozinhando numa lareira ao ar livre, constantemente varrendo e limpando. Deixara a escola ao fim de três anos, porque os pais precisavam da sua ajuda em casa. Na América, as condições eram melhores, mas as ruas afinal não eram “cobertas de ouro”, como muitos emigrantes acreditavam. Durante anos, não houve mobília em casa dos Lewises para além da cama e da mesa. Enquanto outros tinham frigoríficos, Rita ainda usava uma caixa de gelo. Até ao nascimento do terceiro filho, não teve máquina de lavar.
A sua única filha morreu com a idade de doze anos, e Rita nunca recuperou do desgosto. Dedicou-se então totalmente aos filhos. Dois dos três viveram com ela até à sua morte. Tony, o terceiro, deixou a família para servir na II Guerra Mundial e casou-se logo a seguir. Mas ele e a mulher, Edith, foram viver para perto, e Rita continuou a devotar-se aos filhos e depois também aos netos. Quando Frank morreu, já fizera as pazes com ele. Seguindo a tradição das viúvas portuguesas, vestiu de luto durante cinco anos.
Como a maior parte das viúvas de então, tinha a seu cargo todos os cuidados da casa. Trabalhava também no rancho onde viveu com Frank nos primeiros tempos. Mais tarde, ambos trabalharam em fábricas de conserva e venderam nozes para ganharem algum dinheiro extra. Havia sempre trabalho para fazer.
Mas Rita era orgulhosa e obstinada. Ligou-se a outros imigrantes e aprendeu a ler e escrever Inglês pouco tempo depois de ter chegado, e tornou-se cidadã dos Estados Unidos. Uma série de acidentes fê-la perder a articulação de uma perna, sendo-lhe difícil andar, mas continuou a viver como se nada tivesse acontecido. Oferecia muitas horas de serviço voluntário nas actividades da igreja. Gostava de cozer e de jardinar, o que sempre fez quase até ao dia da sua morte com noventa e três anos.

Tradução e
Título de
Daniel de Sá

3 thoughts on “A FANTÁSTICA HISTÓRIA DE RITA GORDA”

  1. daniel,
    Quanto de pesadelo não teve o sonho americano para muita da nossa gente, ontem como hoje. Este foi mais um sonho sofrido, mas sonho, ainda assim, não?

  2. Venha o segundo episódio…

    (entretanto a Rita foi-se desfazendo dos seus noventa quilos, pois paraece que a comida americana já não prometia muito na época).

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