Prioridade do BE: nacionalizar a Apple

6.1. O problema de Portugal é a sua burguesia. O objectivo do socialismo é derrotar os donos de Portugal.

Moção de orientação A, cujo primeiro subscritor é Francisco Louçã, aprovada na VII Convenção do BE

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Como toda a gente sabe – refiro-me àquela gente que aceita com grande sofrimento ir à televisão iluminar o povo com os seus palpites e humores – Sócrates perdeu o debate com Louçã por causa de uma carta inexistente. Todavia, apesar dessa derrota indesmentível, ainda conseguiu dizer ao interlocutor que ele era responsável pela vinda do FMI, que ele tinha sido uma muleta da direita, que a sua desejada reestruturação da dívida acarreta desgraças económicas colossais e que as promessas de nacionalizações são pura fraude. Last but not least, Sócrates trouxe para a ribalta uma passagem do actual programa politico do BE que estaria condenada a passar ignota para a posteridade.

De facto, se aquele eleitorado urbano, jovem, socialmente sofisticado e profissionalmente integrado, mas politicamente iletrado, que tem votado Louçã já desde os tempos do PSR por adesão impulsiva ao protesto ou genuína esperança de alternava lírica à esquerda, soubesse no que se estava a meter, tivesse noções básicas de História e ciência política, jamais o BE teria sequer entrado no Parlamento, quanto mais ter conseguido ser uma réplica do PCP para o boicote à governabilidade e à democracia, aumentando ainda mais a disfuncionalidade político-social da esquerda portuguesa. Ocasião, pois, para um passeio à origem da retórica marxista contra a burguesia*.

A palavra bourgeois aparece pela primeira vez, na sua forma escrita, por volta do século XI, grafada burgenses na lingua rustica romana. Bourgeois deriva de bourg, uma praça-forte nas imediações da habitação de príncipes e nobres. Os “burgueses” habitavam nesse espaço, prestando serviços de que a nobreza dependia em grande escala. Em contrapartida, aos burgueses era conferido um estatuto legal e reconhecia-se, por lei, possuírem certos direitos. Apesar desta condição, os burgueses continuavam numa subordinação feudal adentro do droit seigneurial sur les bourgeois d’une ville. O que também os distinguia dos camponeses era uma associação ao espaço urbano em forte crescimento na Idade Média. À medida que os povoados cresciam e se autonomizavam, aumentava o seu afastamento dos constrangimentos legais e políticos inerentes ao feudalismo. Este ideal de emancipação ficou associado à palavra bourgeois, a qual se tornou sinónimo de liberdade em contraste com os servos da gleba. Ser burguês, pois, era então motivo de orgulho, de ascensão social.

Para se compreender a evolução do termo, temos de anotar o significado de outro termo usado para designar um grupo social ligado à nobreza. No francês medieval, um villanus ou villain era um servo que habitava a ville; isto é, a zona rural, o espaço não fortificado. Estas duas palavras companheiras, bourgeois e villain, distinguiam-se não por serem representativas de classes diferentes, antes de localização, função e obrigações legais. Os burgueses eram residentes urbanos ocupados no comércio, artesanato e burocracia da corte. Os vilãos eram servos que vivam perto das habitações ou fortificações, por oposição aos paysans que viviam nas terras distantes entre urbes. O seigneur, com o burguês e o vilão, completava a ordem social, constituindo-se como o centro da sociedade. Apesar da proximidade destes dois termos, vilão adquiriu mais tarde significados que o excluíram do vocabulário moderno, enquanto bourgeois manteve, já semanticamente afastado das suas origens, uma associação de inferioridade social.

A partir do século XVII, a palavra “burguês” adquire um sentido pejorativo, sendo utilizada pela aristocracia para insultar aqueles que descrevia como rudes, incultos, avarentos, gananciosos, vulgares. Com a progressiva decadência da aristocracia do Antigo Regime, artistas e intelectuais remanescentes da “vida nobre” continuaram a atacar a burguesia, tendo destes esprits raffinés, entusiastas do luxo nobiliárquico e seus privilégios, nascido a famosa expressão: épater les bourgeois. No século XIX, a perseguição aos burgueses continuou, agora levada a cabo pelos românticos e demais grupos sociais, políticos e artísticos avant-garde, onde se deu rédea solta ao ódio contra os mercadores, os incultos, os desprovidos de gosto e sofisticação. Esta elite, inspirada no desenvolvimento espectacular das ciências e tomada por um fulgor renovador indomável, revoltava-se contra os conservadores em matéria de estética e costumes, apontando as suas armas para a burguesia que descrevia como desvitalizada, retrógrada, brutal.

O pensamento de Marx germinou neste ambiente, reflectindo um romantismo acerca do poder da ciência, da inevitabilidade do progresso humano, da intensidade e do poder da redenção do homem numa nova comunidade. Em conjunto com outros intelectuais da época, Marx via a burguesia como a corporalização literal da opressão política e económica, mergulhada em preconceitos, egoísmo e hipocrisia moral. Seria esta, e não a diminuída aristocracia ou o enfraquecido clero, a classe que estava a impedir a evolução da Humanidade. Esta herança ainda hoje sobrevive entre os cultores das diferentes correntes marxistas, expressando a superioridade intelectual e moral de quem se julga acima da vida comum e seus valores. São os descendentes daqueles que no século XIX, crendo-se científica e filosoficamente inovadores, estavam afinal a cumprir e festejar a velha praxis das monarquias – la noblesse oblige. E nesse culto de ódio aos burgueses estava inerente, como a História o comprovou sucessiva e tragicamente, um ódio à democracia constitucional e representativa.

Louçã, um monte de merda que serve os interesses da direita putrefacta que nos afunda na ingovernabilidade e na degradação do espaço público, foi para o debate com Sócrates apenas com o fito de tentar provar que ele era exactamente aquilo que PSD e Cavaco têm repetido desde 2008: um mentiroso. Para tal, Louçã elaborou uma mentira que ninguém sequer suponha possível ser feita tão obscenamente. Mas é num pormenor que só ganha sentido quando cruzado com a citação acima que Louçã se revela em toda a sua extensão de trafulha. Enquanto para os militantes acéfalos anuncia o combate à burguesia com a via para o triunfo do socialismo, vai entretanto à televisão exibir na cara do seu inimigo principal um dos mais recentes e supérfluos símbolos dessa mesma burguesia, e ainda do capitalismo e do consumismo: um iPad. Seria escusado interrogar Louçã acerca da necessidade de tal utensílio estar na sua posse, ainda menos valeria a pena tentar sacar-lhe alguma resposta pela ideológica contradição entre ter esse simples e legítimo usufruto de um produto comercial e cunhar em documento programático as promessas de destruição do sistema de valores que lhe deu origem e propósito. Louçã também não respondeu a nenhuma das questões que Sócrates lhe apresentou, acabando a repetir o inane cliché de que era Sócrates quem não respondia nunca a perguntas, e isto depois deste a tudo ter respondido até ao limite do possível para quem pretende governar. Assim, basta uma imagem, valendo por mil respostas.

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* Citação livre de parte do artigo de P. E. Corcoran, The Bourgeois in Marxian Rhetoric, in History of Political Thought, Exeter, Volume I, Issue 2, Summer 1980

5 thoughts on “Prioridade do BE: nacionalizar a Apple”

  1. ” A ignorância nunca poderá ser um argumento”, disse alguém.
    As tretas aqui postadas pelo Val são o deslumbramento da pior vulgata marxista: c’est pénible.

  2. não percebi bem o comentário de mp, mas tendo lido e gostado do texto senti-me de repente no fim “a pior vulgata marxista”

  3. Louçã foi à televisão dizer aos votantes BE (espero que a muitos): Votem Sócrates!
    É nestas pequenas coisas que se vê estar a máquina de propaganda do PS muitos degraus acima da do PSD.

  4. Alerta amarelo: vacilar na serenidade, mesmo quando se possa ter razão, é já meio caminho andado para a perder completamente, essa razão. Há muitas maneiras de se justificar a escolha eleitoral em José Sócrates. A minha simplesmente não é a emocional.

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