O Hemiciclo no círculo vicioso do marasmo português

David Crisóstomo e Luís Vargas, nossos conhecidos de outras andanças, lançaram uma calhauzada no charco do marasmo cívico que nos define e atrofia ao criarem o Hemiciclo – Democracia em tempo real

Tal como escrevem no Sobre, a ambição é heróica: “esta ferramenta pretende melhorar a perceção que muitos possam ter da Assembleia da República e dos deputados dos diferentes grupos parlamentares que a todos nós representam.” À cautela, não explicam como é que lá vão chegar, e compreende-se porquê. É que o discurso contra os políticos, seja de origem populista, ditatorial ou anárquica, não se modifica por estar exposto a nova informação. Os mecanismos cognitivos e sociais que dão força a essa verborreia estão blindados pela recusa da complexidade, da argumentação e da mera aceitação dos factos. Logo, jamais esses indivíduos irão perder uma caloria a visitar o hemiciclo.pt com módica curiosidade para descobrirem algo acerca do que se passa na Assembleia da República. É que se a tivessem, essa abertura da curiosidade por mais ínfima que fosse, nunca teriam começado por mergulhar na alucinação dos simplismos, das distorções e do ódio asinino.

A palavra “ferramenta” descreve bem a função do que foi lançado. Não há dimensões narrativas nem editoriais, apenas blocos temáticos com dados brutos. As interpretações, ilações e reflexões ficam para quem as quiser – e puder – fazer. Só que a enormíssima maioria da população não está em condições de usar a muito bem esgalhada ferramenta porque ela é demasiado técnica para as suas capacidades intelectuais, não dispondo das literacias variadas necessárias ao aproveitamento do caudal informativo. Serão os jornalistas, os investigadores, os políticos e uma franja de cidadãos motivados para a intervenção cívica e política a utilizar em pleno o que ali se organiza com eficácia e bom gosto.

Independentemente da viabilidade do sonho lindo de ajudar os cidadãos a conhecerem melhor a sua democracia, este projecto é também especialmente relevante por causa da comparação com o que acontece em parlamento.pt, o canal digital oficial da Assembleia da República. Com um desenho gráfico e concepção tecnológica que há 10 anos já estavam anacrónicos, o estado de abandono quanto às funções e linguagens de comunicação que ali poderiam ser aplicadas é um problema político por excelência. Revela que o marasmo cívico que nos define e atrofia é um espelho do marasmo político em que os partidos existem como organizações sem criatividade, sem imaginação, sem lideranças autênticas. Acaso não teria sido possível a uma qualquer juventude partidária fazer o mesmo que o David e o Vargas acabaram de fazer? E acaso não teria sido possível uma qualquer juventude partidária propor às congéneres a criação de uma equipa para lançarem em conjunto um projecto de pura cidadania, no caso o do renovo e expansão do canal digital do Parlamento? E, foda-se, não poderia algum adulto, num qualquer partido com representação parlamentar ou sem ela, ter-se lembrado do mesmo e ter levado a ideia aos miúdos que nasceram já a falar digitalês?

Também por este último ponto, ou que fosse só por este, parabéns à dupla criativa e cidadã.

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Psssst

Por favor, não grafem “site” como se essa aberração fosse uma palavra portuguesa para ler em português. Por favor, respeitem a constituição da Língua com uma devoção, se não maior, pelo menos parecida com aquela que sabemos terem pela Constituição e pelo constitucionalismo.

5 thoughts on “O Hemiciclo no círculo vicioso do marasmo português”

  1. Valupi, tenho dúvidas sobre a necessidade que os cidadãos portugueses sentirão de incluírem a/o coisa/o em questão na lista das suas necessidades básicas e de, concomitantemente, passarem a usar sofregamente esta espécie de big-brother institucional (ou esse «sonho lindo de ajudar os cidadãos a conhecerem melhor a sua democracia», queira isto dizer qualquer coisa diferente-mas-para-melhor do que um pensamento de um Gustavo Santos no universo das cenas de auto-ajuda).

    Nota, há aqui um subtexto? Se as interpreto bem, as desnecessárias (?) referências ao papel das malfadadas «juventudes partidárias» e, antes, ao das lutas com “calhaus” parecem ir, ambas!, no sentido de infantilização organizada mas proto-tecnológica da política.

  2. bom , assim de caras , diria que na assembleia votam ( e desvotam.. hoje é assim , amanhã é ao contrário , e lá vai o país , feito bêbado , aos esses , estampar-se contra a bancarrota.) leis , resmas , palettes de leis. são autênticas matracas , metralhadoras. estamos cercados , afogados em leis , burocracias e ronhonhos . e , como quantidade não significa de todo qualidade e neste caso e óbvio , dado os resultados práticos desse excelso trabalho de escrevinhar papéis , declino o convite , muito obrigada , passo.

  3. Ah ! Essa queda tão Portuguesa para a forma e não para o conteúdo, como se fosse possivel classificar de democrático um regime em que o Executivo manda no Legislativo. Em plena crise social e económica, brutal que foi nas sua consequencias, quantas dissidencias houve, quantas criticas frontais de deputados ao seu Partido ? Para dar uma ideia em como um verdadeiro Parlamento funciona, aquele em que os Parlamentares conservam um modicum de independencia face aos seus directorios partidários, temos o exemplo de Jeremy Corbyn, (que não é caso unico), ao votar nos ultimos vinte anos perto de 500 vezes contra o seu Partido e contra o seu Governo mas continuando a ser repetidamente reeleito pelos votantes da sua circunscrição eleitoral . Experimente algum deputado fazer o mesmo, uma só vez que seja, e terá morte súbita, politicamente entenda-se. Assembleia da Republica ? Certamente. Parlamento soberano ? Nem por isso.

  4. Cidadãos olharem para dentro do poder é “big-brother institucional”, diz o Eric? O Orwell ficaria confuso com tão original inversão.

  5. adorei! o texto. :-) para que serve um martelo sem a narrativa das mãos? martelar, quanto navegar, é preciso. tu dás uma mãozona e eu aceito dar uma também. está decidido.:-)

    (por cá, como posso eu corrigir as bocas dos sites se os verbos na terceira do singular são conjugados com ésses? ai! quero mais textos assim felizes!) :-)

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