Os mecanismos comunicacionais vivem da “novidade”. A lógica do seu desenvolvimento depende de haver novas informações todos os dias. Se não for assim, o caso Freeport (como qualquer outro) conhecerá um pico e depois cairá progressivamente no esquecimento, até ao dia em que as mesmas informações já esquecidas aparecerão como nova “novidade”, ou quando haja mesmo “novidades”. Este mecanismo pouco tem a ver com a substância da questão, quando esta existe fora da sua mediatização, como é o caso Freeport. O seu relançamento não se deveu a qualquer fuga processual para os jornais (como sugeriu falsamente o Primeiro-ministro), mas sim a um dia de buscas da PJ e às informações relevantes (declarações de familiares de José Sócrates) que se lhe seguiram. Agora, manter ou não a questão na agenda dos media, cada vez mais depende da orientação editorial desses mesmos media. O situacionismo ou a independência vão ser mais nítidos agora do que nos dias de brasa destes fins de semana, em que era impossível ocultar que havia um “caso” em curso (e mesmo assim a RTP nalguns noticiários e o Jornal de Notícias procederam assim). O que se sabe, informações, contradições, declarações, são de uma gravidade que não pode ser ignorada nem esquecida. No passado, em relação a muitos outros casos de menor importância, a comunicação social manteve-os como “escândalos”, dando-lhe sequência investigativa e persistência editorial, fazendo exigências de clarificação e não deixando que haja esquecimento. Este caso, talvez o que mais gravemente afecta o centro do poder (o único precedente idêntico foi o “caso Emáudio” e houve aí uma deliberada desvalorização para não atingir Mário Soares), não pode ser escondido debaixo de um tapete. Já se sabem coisas a mais para perceber que ele não cabe debaixo de um tapete.
Pacheco
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João Miranda aconselha longa memória para estes dias marcados pelo nevoeiro de guerra. Por razões contrárias às suas, dou-lhe absoluta razão. Quem dera que o caso Freeport permanecesse na memória de todos por muitos e bons anos. Porque, de facto, a sua gravidade pede consequências, pede responsáveis e pede castigos. Neste momento, eu sou um dos derrotados, porque assisto a um ataque ao regime democrático usando-se como arma o que o regime tem de melhor: a liberdade.
Constate-se o que um passarão do calibre de Pacheco Pereira se permite afirmar. No parágrafo citado encontramos as seguintes mensagens:
- O caso Freeport só sobrevive na comunicação social com recurso a "novidades".
- As verdadeiras "novidades", porém, ainda não apareceram.
- O caso Freeport existe para além dos mecanismos mediáticos.
- O que está na origem do caso Freeport é matéria de justiça e investigação policial.
- O Primeiro-Ministro mentiu quando referiu o papel da comunicação social.
- É naturalíssimo que algum jornalista conheça previamente, ou simultaneamente, as buscas efectuadas.
- O trabalho dos jornalistas não está sujeito a escrutínio, podendo-se confiar no que publicam (uma entrevista truncada, por exemplo).
- Entrámos numa fase em que cada órgão de comunicação social irá revelar as suas linhas editoriais.
- Os órgãos que deixarem cair o caso provarão a sua conivência com os interesses do Governo e do PS.
- Antes deste Governo PS, e em relação a outros casos, a comunicação social manteve certos casos como "escândalos", fazendo exigências e impedindo o esquecimento. Por isso, é o que deve voltar a acontecer, no mínimo.
- O que se sabe do caso Freeport impossibilita o seu silenciamento, como se tem feito noutros casos.
Ou seja, o Pacheco declara-se possuidor de conhecimentos e critérios que lhe conferem uma autoridade moral para julgar com radicalidade a conduta de toda a comunicação social. Quem não se conformar ao seu entendimento da questão, estará a servir os interesses do inimigo. Isto não é discurso de comentador, publicista, crítico, não. O que vemos e ouvimos é um militante, um agitador, uma cheerleader que puxa pela claque. Ele afirma que algo de muito grave aconteceu, algo que Sócrates, Governo e PS querem esconder. Daí a necessidade de lutar, lutar pela manutenção do caso na agenda diária. Estamos no reino do maniqueísmo, não se admitem neutralidades nem se fazem prisioneiros.
Ora, quem alinhar com o Pacheco precisa de ter consciência de que se está a alistar no exército dos pulhas e dos imbecis (é escolher). Porque, nesta altura, não pode haver ninguém mais interessado na completa investigação do caso do que o PS, os seus militantes, os seus eleitores e, foda-se!, todo e qualquer cidadão com um pingo de vergonha na cara. O pior que pode acontecer à democracia é retirar-se este caso da atenção mediática, pois isso levaria a que o mal espalhado não pudesse mais ser reparado. Pelo contrário, a investigação tem de bater célere no fundo e, sem uma pausa, continuar a escavar. Está a ser feito um assalto à dignidade do regime. E ver esta questão como um problema de segurança nacional não será exagerado. Das duas, uma: ou o Primeiro-Ministro – e sabe-se lá que outros altos quadros governativos, partidários e políticos – é culpado do mais grave caso de corrupção em Portugal, tendo de ser imediatamente exonerado; ou há portugueses (pelo menos estes) que se dispõem a destruir o Estado de direito, a Constituição e a democracia representativa através da infâmia sobre os seus legítimos representantes.
Eis a suprema ironia: admitindo a hipótese de ter razão, e Sócrates ser culpado, Pacheco continuará a ter agido como uma reles figura. Porque para ele não há presunção de inocência, bastam as percepções, boatos e suspeitas para fazer campanha contra a honra de alguém. As suas afirmações repetem a ideia de que o interesse de Sócrates está em que nada se investigue para além das questões legais (entretanto dilucidadas publicamente ao mais ínfimo pormenor, como talvez nenhuma outra decisão governativa na contemporaneidade); adivinhando-se a sua desilusão por nada de errado ter sido descoberto nesse plano, até apareceu uma autoridade como Freitas do Amaral a validar o processo. Nenhuma prova abonatória o satisfaz ou sossega, e não se coíbe de envolver centenas, e milhares, de pessoas nessa cumplicidade que denuncia impiedoso – jornalistas, deputados, comentadores, militantes, cidadãos. Todos a trabalharem para o encobrimento, o esquecimento, a mentira. Todos contra o Pacheco, pairando por cima de nós no seu tapete voador.