Aviso aos pacientes: este blogue é antianalgésico, pirético e inflamatório. Em caso de agravamento dos sintomas, escreva aos enfermeiros de plantão.
Apenas para administração interna; o fabricante não se responsabiliza por usos incorrectos deste fármaco.

Um livro por semana 100



«Uma memória de Pereiros» de Joaquim do Nascimento

São 14 crónicas de revisitação («Nasci nos Pereiros e ali vivi até aos doze anos») e daí o subtítulo – «Quotidianos de uma aldeia do Alto Douro – 1930-1980». A geografia sentimental é vasta: «A fonte da aldeia, a azenha ou lagar do azeite e o forno, tal como a igreja, as capelas, o cemitério, as tabernas, ou sotos quando vendiam tecidos, a escola do Combro e as salas de aula que precederam esta, se alguém ainda as conseguir identificar, os velhos caminhos, o rio e os seus açudes e pontes, o moinho da tia Elisa, a caminho de Valongo mas ainda do lado de cá do rio, tudo isto constitui a memória colectiva do povo dos Pereiros». Tudo começa na paisagem («As árvores da minha terra são os sobreiros, embora uma ou outra oliveira de tronco carcomido pelos anos possa figurar em segundo lugar») e acaba no povoamento: «Nos Pereiros, ao pedreiro, ao carpinteiro, ao ferreiro, ao ferrador, ao sapateiro chamava-se artista». Fiquemos pela crónica sobre a carreira: «Mais do que o seu percurso entre a Meda e o Pinhão, a carreira era para nós a velha camioneta que vinha todos os dias e nos ligava pela EN 222 à Vila, ao Comboio e ao Mundo. A carreira da Meda ou a carreira da Viúva passava todas as manhãs, pelas oito e trinta minutos a caminho do Pinhão e regressava às quatro e meia da tarde. Mostrar-se na Avenida para ver passar a carreira constituía a actividade social mais importante da gente da Vila e não vestir a melhor roupa para solenizar esse momento podia desqualificar um cidadão. Nesse curto intervalo desfilavam pela Avenida funcionários, artistas, comerciantes, desocupados, donas de casa virtuosas e meninas casadoiras, bisbilhotando quem tinha chegado e imaginando o destino de quem seguia».

(Editora: Padrões Culturais, Capa: Mário Andrade, Apoio: Associação Amigos de Pereiros)

Vale a pena continuar a anotar o que acontece ao Pacheco

Pacheco Pereira está em alta. Conseguiu revitalizar a sua imagem de polemista através de um triplo estratagema: primeiro, estigmatizou a comunicação social no seu conjunto; segundo, criou uma classificação lúdica e provocadora; terceiro, explora vilmente o ritmo e perversão da campanha contra Sócrates. A lógica é a da política-espectáculo, o ganho mede-se em notoriedade para o artista. Pacheco investe em si, na sua marca, sabendo muito bem que esse é o único lugar onde quer estar. No campeonato particular com Marcelo Rebelo de Sousa e Vasco Pulido Valente, leva destacada vantagem.

Quais ideias reformadoras quais quê, ninguém lhas conhece. Qual projecto político e qual futuro do País, deixa-te disso ó pá. Quer ele lá saber da Manela para alguma coisa, era só o que mais faltava. Os chefes vêm e vão, esta lapa fica e fica. Aliás, gorada a possibilidade de fazer da senhora alguma coisa com pés e cabeça à frente do partido, Pacheco já só trabalha para garantir um poiso em Bruxelas, no bem-bom. A reforma quer-se dourada, platinada, e a vida de eurodeputado tem encantos irresistíveis para quem não suporta a choldra nacional.

O Índice do Situacionismo funciona através de um sofisma primário: sendo inevitável o acompanhamento da actualidade e a reciclagem dos conteúdos noticiosos, Pacheco infecta essa mudança com o vírus da conivência. Se algum órgão de comunicação social não corresponder ao farisaico critério que só se encontra definido na sua carola, passa a ser denunciado com factos: capas, títulos, textos, fotos, alinhamentos, minutos, segundos. Ninguém pode escapar. Ou melhor, só o Avante, no saudoso ódio contra Sá Carneiro, estaria conforme ao zelo com que chicoteia a deontologia e honestidade intelectual alheias. A inevitável ambiguidade do real, mediado segundo as idiossincrasias individuais e de grupo, é a matéria do labéu. Não contas a história à minha maneira? Então, não prestas, és filho da puta e estás feito com eles, com a situação.

Esta manha de vendedor de atoalhados funciona, porque é tóxica, terrorista. Mas o antídoto tem de ser encontrado no veneno. O que alimenta o demónio do Pacheco não é o amor à cidade, a qual está cheia de gentalha com quem ele não quer perder uma caloria. O que diz dos blogues é o exacto espelho do que pensa da comunidade, onde 99% dos seus concidadãos são do piorio. Naaa. O que faz correr o Pacheco é o pavor da responsabilidade. Por isso há muito que ele desistiu de vir a chefiar o PSD, quanto mais a governar o rectângulo. Quão melhor não é ficar na plateia, ou no camarote, mandando bocas, pateando, aplaudindo por capricho e vingança. E depois adormecer alucinando-se com a missão cumprida.

Enquanto Sócrates vai para a frente do exército, dando o coiro ao manifesto, Pacheco barafusta e agita as perninhas de longe, ao largo. Ninguém o pode atingir. Afinal, ele não assume qualquer responsabilidade pela situação.

Freeport começa finalmente a dar lucro

Terminado o Prós e Contras, eis o lucro do caso Freeport até agora:

– Os viciados em teorias da conspiração saltaram da toca assanhados e agora sabemos melhor quem eles são e do que são capazes. O problema desta gente não está no levantamento do problema, está no boicote da solução.

– Apenas para o País ter ficado a conhecer a qualidade técnica e política de Rui Gonçalves já tudo valeu a pena, passe a boutade. Como ele há milhares e milhares de portugueses. E é com eles que nos queremos governar.

– Cresce a fervura social que pode levar à reforma da Justiça, a mais importante das reformas a fazer, sob qualquer ponto de vista. Só por uma funda ignorância cultural e cívica, essência do salazarismo estrutural que tanto demora a passar, o povo não tem exigido aos partidos um decidido e transparente investimento no sistema judicial. O povo tem tido medo, tem sido cobarde, é miserável. Mas o poder continua na sua mão. Assim ele acredite na superioridade da democracia. Assim cada um acredite em si e queira viver com honra.

Vinte Linhas 314

Ruslam Botiev dá um «bom dia a Portugal»

Esta chuva que parece não ter fim é trazida por uma frente polar fria que nenhum anticiclone açoriano detém. Pode encher barragens mas prejudica a vida de muita gente. O meu amigo Ruslam Botiev, artista plástico mongol apaixonado por Lisboa, costuma fazer do passeio ao lado da porta da Basílica dos Mártires o seu atelier-exposição. Esta chuva só o prejudica a ele e aos seus quadros de pequeno formato. Um destes dias tenho que lhe dizer que os seus desenhos sobre Lisboa, suas ruas e suas gentes, seus transportes públicos e suas estátuas, seus telhados e seus gatos, me faz recordar o traço de Nuno San Payo. Parece-me óbvio que Ruslam Botiev, o sorridente artista plástico que veio da Mongólia, só por mero acaso poderá ter ouvido sequer falar dos desenhos de Nuno San Payo que integram um álbum intitulado «Calendário de Lisboa», editado em 1948 pela Livraria Popular de Francisco Franco. Ruslam Botiev entra todos os dias em Lisboa pelo comboio da ponte 25 de Abril. E, porque gosta da cidade dos alfacinhas apesar de ser natural da Mongólia, chamou «bom dia a Portugal» a uma série de desenhos seus feitos sobre Lisboa. Depois de ter vivido em Murça onde trabalhou sob diversas formas a figura da «porca de Murça», Ruslam Botiev veio para Lisboa e veio para ficar na Rua Garrett. Quando a tempestade passar, quando o sol chegar com a sua força contra a frente polar fria, eu hei-de oferecer ao meu amigo Ruslam Botiev uma reprodução da série «calendário de Lisboa» de Nuno San Payo provando nas parecenças do traço com a sua série «bom dia a Portugal» porque quando se ama uma cidade todos os desenhos de todos os artistas acabam por ser, afinal e no fim de contas, muito parecidos entre si.

Lembretes

– Mesmo que apareçam emails a revelar que Sócrates planeou o 11 de Setembro, fez a cabeça aos Távoras e foi uma muito má influência para Judas Iscariotes, Manuela Ferreira Leite continuará a ser um desastre.

– Dias Loureiro voltou a ser desacreditado por António Marta, desta vez com peso institucional máximo. Escusado será dizer que Dias Loureiro deve estar convencido de que nunca cairá sozinho, se é que alguma vez cairá. E é óbvio que este caso de corrupção, o da SLN, é só o mais grave no pós-25 de Abril, pela extensão do que está suposto – atingindo o centro executivo e ideológico do cavaquismo, mas também todo o tecido político e bancário pelas debilidades sistémicas expostas.

– Enquanto o PS tem várias figuras prontas para substituir Sócrates imediatamente, sem espinhas para o eleitorado, até capazes de recolher o apoio das franjas irritadas, o PSD não tem ninguém que prometa mais do que estancar a hemorragia. E à volta vegetam o Portas, Louçã e Jerónimo, três tristes tipos. É este o único problema da política nacional.

– A histeria dos ataques contra Sócrates, logo desde 2006, não se explica só pela política reformista do Governo. Mais fundo se encontra o casus foederis (tradução: aquilo que os fode): é uma luta entre gerações, modelos de conhecimento, práxis politica, estilos de vida. Os pançudos não perdoam a boa forma do corredor, e farão de tudo para lhe reduzir a passada.

– O desfecho do caso Casa Pia vem aí e será um importantíssimo momento de reflexão para a Nação, seja qual for o resultado.

– 2009 já só tem 11 meses para dar cabo desta merda toda.

Manel, larga o vinho

Manuel Monteiro é uma personagem trágico-cómica, como qualquer português very typical. O seu maior desejo era voltar ao CDS, regressar ao vaidoso corrupio dos jornalistas, ter poiso garantido na Assembleia, receber convites para brunches e almoços em hotéis de luxo, atravessar feiras com passo seguro e olhar confiante, desfrutar de momentos em que até ele acreditaria no que estivesse a dizer. O sonho é lindo, e nessa visão adormece embalado há anos, mas não teve Portas por onde entrar. Assim, arrastou-se pelo PND até ao dia em que a filial da Madeira introduziu a suástica na gesta do parlamentarismo insular. Esse foi precisamente o dia, horas depois, em que fugiu do hospício.

Ontem discursou no 4ª Congresso do PND. Aproveitou a ocasião para mostrar o que Portugal está a perder ao ignorar as suas ideias. Eis o raciocínio: os partidos com representação em São Bento são corruptos e/ou incompetentes, o Primeiro-Ministro é suspeito de crimes vários, o Presidente da República está a ser irresponsável, os militares só não fazem um golpe de Estado por carência de recursos não especificados (munições? gasóil?) e, algures em 2009, os patrícios irão para a rua fazer mal uns aos outros. Que fazer? Demitir o Governo, diz ele. E para quê, se tudo à volta é uma desgraça e ninguém irá escapar? Isso já não explicou, talvez por falta de tempo.

O Manel faz parte da legião dos zangados, a qual vive com a certeza de que alguma coisa no seu quotidiano está completamente errada. Mas que será? O sentimento de confusão e insegurança aumenta com o declínio cognitivo, a ansiedade torna-se angústia, desespero. Algo está errado, e alguém tem culpa, mas nunca os zangados. Claro. A zanga só é possível num estado de narcisismo e projecção, não em abertura e renovo. A intensidade deste rancor justiceiro é a exacta medida da sua impotência política. O verbo solta-se cristalizado, lancinante, e substitui a acção. Aparecem as matrizes do social, os emblemas do poder, as forças coercivas a prometer a salvação. Quando o seu mundo parece ruir, os zangados acabam invariavelmente a chamar pela tropa. A tropa-fandanga.

Vinte Linhas 313

O exclusivo do Benfica em troca de uma noticia censurada

No passado dia 28 pelas 13 horas um jornalista do Diário de Noticias contactou o presidente do Getafe, Angel Torres por causa da contratação do guarda-redes Stojkovic. Durante a conversa (e sem ninguém lhe perguntar) o dirigente espanhol adiantou que Quique Flores lhe tinha dito o melhor possível de Quim guarda-redes do Benfica confirmando não ter problemas em prescindir dele pois tinha três jogadores de qualidade semelhante para o lugar. Alguém do Benfica, durante a tarde tentou desmentir que Quique Flores tivesse falado com o dirigente do Getafe sobre Quim. Já durante a noite um elemento do Benfica contactou o jornalista propondo a retirada da notícia por troca com um exclusivo mas sem revelar qual. No dia seguinte uma rádio conotada com o Benfica colocou no ar declarações do presidente do Getafe a confirmar que Quim lhe foi oferecido mas a desmentir, numa frase inacabada, ter falado com Quique Flores. Acto contínuo o site do Benfica emitia um comunicado em que o clube dizia estranhar as declarações proferida ao Diário de Notícias. A pesada máquina do Benfica funcionou mais uma vez. Como já tinha funcionado no falso centenário de 2004 e na paranóia das Ligas de 1935 a 1938 – como se o Campeonato de Portugal tivesse sido apagado da História do Futebol Português. Lembrei-me logo de uma cena do Eusébio que no meio da confusão dos festejos num dos campeonatos dos anos 60 agrediu um pobre adepto que só queria festejar. Pois no dia seguinte lá estava a «boa imprensa» no hospital a registar a entrega de uma camisola e de uma bola autografada. Isto já foi há 40 anos mas aquela gente não se cansa de tentar reescrever a história. Uma vez mais.

Saturday Press Fever

Sol, Expresso, Público, Correio da Manhã, 24 Horas, Visão, Sábado, TVI e SIC dão trabalho a profissionais responsáveis pelas notícias, editoriais, direcção e administração. Toda essa minha gente tem nome e família (isto é um supónhamos). Não será também exagerado antecipar que possuam algumas noções básicas de moral, ética, deontologia, direito, jurisprudência, cidadania, civismo, dignidade e bem comum. Estas são as minhas suspeitas, pelo que me permito elaborar a hipótese de este pessoal saber o que faz e achar bem que se faça assim. Já tenho menos suspeitas (aliás, nem uma) de que eles se consigam aguentar à bomboca caso a sua privacidade entre em regime de devassa pública.

Entregar a chefia da investigação aos noticiários, como advoga o Pacheco, corresponde à anulação do Estado de direito. Quero só lembrar que estamos perante um dos principais temas tratados por Ésquilo, um gajo que escrevia tragédias.

Breve canção para «A balada das baleias»

Tantas bocas à espera

Da riqueza da baleia

Na lancha da Primavera

Não tememos maré-cheia

Os velhos lobos-do-mar

Sentados na nostalgia

Já nada podem pescar

Quando chega o fim do dia

Botes, lanchas e vapores

Na Vigia da Queimada

As vozes dos trancadores

São tempestade poupada

Quando o mar é labirinto

Quando saudade é memória

Tudo aquilo que eu sinto

Faz nascer a nova história

Aqui no centro do Mundo

Casa dos botes, meu lar

Sentimento mais profundo

Tem a fundura do mar

Com chapéu ou em cabelo

Há nestes homens cansados

As muralhas dum castelo

Batido por todos os lados

Mulheres são como sereias

Lanchas com nome escrito

Fazem as horas mais cheias

Quando se pesca em conflito

As Filarmónicas perdidas

Chegam o som junto ao cais

No mapa das nossas vidas

Há baleias de nunca mais

__

(nota: A Balada das Baleias é um livro de Sérgio Ávila, Ermelindo Ávila e Sidónio Bettencourt, da Ver Açor Editores)

Para além de arrogante, mentiroso e corrupto, não esquecer que também é rabeta

O caso Freeport vai conhecer alguns dias de alívio, pelo que recomendo ao Sol, à TVI, ao Zé Manel e ao Pacheco que recuperem a não menos apelativa suspeita de paneleirice. Deixo aqui uma pista em forma de pergunta, inspirada na escola jornalística do Mário Crespo: existe algum DVD onde se veja Sócrates no truca-truca com o Diogo Infante? Se existe, queria pedir o favor de não mo mostrarem. Mantê-lo em segredo será um elementar acto de justiça; mas isto é apenas o meu critério, não quero ferir susceptibilidades. Aliás, se der para encontrar um outro DVD – ou mesmo VHS, que se lixe, a vizinha do 4º andar tem um leitor desses a funcionar ranhosamente, aproveito e vou lá a casa ver o filme; e ainda levo uma garrafa de ginja, é só do que ela bebe, a estouvada – com duas bifas, daquelas mesmo muito corruptas, bifas com fotos no Hi5 e cadastro na Praia da Oura, a dar à língua em zonas de protecção especial de bordas indefinidas, e pelo meio levantando a cabeça só para culpar Sócrates por não passar dum rabeta que as deixou ali abandonadas sem outro modo de ocupar o tempo, eu gostaria de pedir emprestada essa prova incriminatória por 2 ou 3 dias. Em nome da verdade nua e crua.

Um livro por semana 24

«A sagração da Primavera» de Aurélio Lopes

Depois de «Devoção e poder nas Festas do Espírito Santo» em 2004, o antropólogo Aurélio Lopes (natural dos Cunqueiros) volta a publicar um trabalho de grande fôlego: perto de 300 páginas nas quais pretende «levantar pistas de investigação para a compreensão das raízes remotas de muitas das nossas tradições primaveris, ainda existentes ou de recente desaparecimento.»

Organizado entre o Domingo de Ramos e o São João, este estudo incide também sobre o 1º de Maio e o Dia da Espiga. E começa por responder a três perguntas: «Porquê, ainda hoje, um pouco por todo o país, se enchem, nestes tempos, as igrejas de flores e ramagens e, em tempos passados, de andorinhas? Porque se apanham giestas (maias) e com elas se enfeitam e protegem habitações, animais e pessoas? Porque persistem práticas como o colher da espiga nos nossos campos, bosques ou searas?»

Ainda hoje em muitas povoações portuguesas se usa colocar maias (ramos de flores, cruzes e coroas) nas portas das casas e dos currais mas, explica o autor, «maias ou maios são igualmente as efígies ou as crianças que neste dia são adornados e coroados com flores, e também a árvore (árvore de maio) em redor da qual se dança e canta. Maias são ainda as mais comuns das flores silvestres da época, as giestas e, até, no norte transmontano, os cânticos (cantar as maias) que presidiam, em tempos idos, à solicitação de dádivas. Maio é o tempo que decorre, as personificações que o corporizam, as subversões daí emanantes e as conexões florais que aí se interligam em fecunda simbiose.»

(Editora: Edições Cosmos, Capa: Brian Sroud, Apoio: Câmara Municipal de Santarém)

Os básicos

Noventa minutos distam entre dois emails que permitiram à oposição acreditar, por breves instantes, que existe e serve para alguma coisa. A tonteira alastrou, conseguindo envolver o Primeiro-Ministro. Fernanda Câncio explica.

Os que saíram à rua em ceroulas e entraram felizes no berreiro, protestando contra a mentira e propaganda miserável que nos oprime, devem ser louvados. Consciente, subconsciente, inconsciente ou asininamente, esta malta imagina que o Governo, ou parte dele, quis mesmo enganar a populaça. E que não teria encontrado melhor área para o fazer do que a da Educação, nem melhor forma do que através dum estudo que ficaria ao dispor de qualquer mariola para ser analisado e servir de prova condenatória. Parece que os estou a ver, os olhares malignos desses diabólicos governantes soltando fagulhas, a congeminar o genial plano. Primeiro, mandar um email onde se diga que o estudo é da OCDE. Depois, esperar hora e meia para enviar a versão corrigida. Pronto, ’tá feito. Mais uma brilhante manipulação do grande mentiroso – o qual, como é óbvio, óbvio e evidente, do que precisa é de repetidas situações onde se veja confrontado com insultos e ataques à sua imagem. Especialmente agora, particularmente na Educação e precisamente com peças propagandísticas com a tipologia do relatório em causa.

Parabéns, estais aptos a frequentar o ensino básico.

O tapete voador

Os mecanismos comunicacionais vivem da “novidade”. A lógica do seu desenvolvimento depende de haver novas informações todos os dias. Se não for assim, o caso Freeport (como qualquer outro) conhecerá um pico e depois cairá progressivamente no esquecimento, até ao dia em que as mesmas informações já esquecidas aparecerão como nova “novidade”, ou quando haja mesmo “novidades”. Este mecanismo pouco tem a ver com a substância da questão, quando esta existe fora da sua mediatização, como é o caso Freeport. O seu relançamento não se deveu a qualquer fuga processual para os jornais (como sugeriu falsamente o Primeiro-ministro), mas sim a um dia de buscas da PJ e às informações relevantes (declarações de familiares de José Sócrates) que se lhe seguiram. Agora, manter ou não a questão na agenda dos media, cada vez mais depende da orientação editorial desses mesmos media. O situacionismo ou a independência vão ser mais nítidos agora do que nos dias de brasa destes fins de semana, em que era impossível ocultar que havia um “caso” em curso (e mesmo assim a RTP nalguns noticiários e o Jornal de Notícias procederam assim). O que se sabe, informações, contradições, declarações, são de uma gravidade que não pode ser ignorada nem esquecida. No passado, em relação a muitos outros casos de menor importância, a comunicação social manteve-os como “escândalos”, dando-lhe sequência investigativa e persistência editorial, fazendo exigências de clarificação e não deixando que haja esquecimento. Este caso, talvez o que mais gravemente afecta o centro do poder (o único precedente idêntico foi o “caso Emáudio” e houve aí uma deliberada desvalorização para não atingir Mário Soares), não pode ser escondido debaixo de um tapete. Já se sabem coisas a mais para perceber que ele não cabe debaixo de um tapete.

Pacheco

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João Miranda aconselha longa memória para estes dias marcados pelo nevoeiro de guerra. Por razões contrárias às suas, dou-lhe absoluta razão. Quem dera que o caso Freeport permanecesse na memória de todos por muitos e bons anos. Porque, de facto, a sua gravidade pede consequências, pede responsáveis e pede castigos. Neste momento, eu sou um dos derrotados, porque assisto a um ataque ao regime democrático usando-se como arma o que o regime tem de melhor: a liberdade.

Constate-se o que um passarão do calibre de Pacheco Pereira se permite afirmar. No parágrafo citado encontramos as seguintes mensagens:

- O caso Freeport só sobrevive na comunicação social com recurso a "novidades".
- As verdadeiras "novidades", porém, ainda não apareceram.
- O caso Freeport existe para além dos mecanismos mediáticos.
- O que está na origem do caso Freeport é matéria de justiça e investigação policial.
- O Primeiro-Ministro mentiu quando referiu o papel da comunicação social.
- É naturalíssimo que algum jornalista conheça previamente, ou simultaneamente, as buscas efectuadas.
- O trabalho dos jornalistas não está sujeito a escrutínio, podendo-se confiar no que publicam (uma entrevista truncada, por exemplo).
- Entrámos numa fase em que cada órgão de comunicação social irá revelar as suas linhas editoriais.
- Os órgãos que deixarem cair o caso provarão a sua conivência com os interesses do Governo e do PS.
- Antes deste Governo PS, e em relação a outros casos, a comunicação social manteve certos casos como "escândalos", fazendo exigências e impedindo o esquecimento. Por isso, é o que deve voltar a acontecer, no mínimo.
- O que se sabe do caso Freeport impossibilita o seu silenciamento, como se tem feito noutros casos.

Ou seja, o Pacheco declara-se possuidor de conhecimentos e critérios que lhe conferem uma autoridade moral para julgar com radicalidade a conduta de toda a comunicação social. Quem não se conformar ao seu entendimento da questão, estará a servir os interesses do inimigo. Isto não é discurso de comentador, publicista, crítico, não. O que vemos e ouvimos é um militante, um agitador, uma cheerleader que puxa pela claque. Ele afirma que algo de muito grave aconteceu, algo que Sócrates, Governo e PS querem esconder. Daí a necessidade de lutar, lutar pela manutenção do caso na agenda diária. Estamos no reino do maniqueísmo, não se admitem neutralidades nem se fazem prisioneiros.

Ora, quem alinhar com o Pacheco precisa de ter consciência de que se está a alistar no exército dos pulhas e dos imbecis (é escolher). Porque, nesta altura, não pode haver ninguém mais interessado na completa investigação do caso do que o PS, os seus militantes, os seus eleitores e, foda-se!, todo e qualquer cidadão com um pingo de vergonha na cara. O pior que pode acontecer à democracia é retirar-se este caso da atenção mediática, pois isso levaria a que o mal espalhado não pudesse mais ser reparado. Pelo contrário, a investigação tem de bater célere no fundo e, sem uma pausa, continuar a escavar. Está a ser feito um assalto à dignidade do regime. E ver esta questão como um problema de segurança nacional não será exagerado. Das duas, uma: ou o Primeiro-Ministro – e sabe-se lá que outros altos quadros governativos, partidários e políticos – é culpado do mais grave caso de corrupção em Portugal, tendo de ser imediatamente exonerado; ou há portugueses (pelo menos estes) que se dispõem a destruir o Estado de direito, a Constituição e a democracia representativa através da infâmia sobre os seus legítimos representantes.

Eis a suprema ironia: admitindo a hipótese de ter razão, e Sócrates ser culpado, Pacheco continuará a ter agido como uma reles figura. Porque para ele não há presunção de inocência, bastam as percepções, boatos e suspeitas para fazer campanha contra a honra de alguém. As suas afirmações repetem a ideia de que o interesse de Sócrates está em que nada se investigue para além das questões legais (entretanto dilucidadas publicamente ao mais ínfimo pormenor, como talvez nenhuma outra decisão governativa na contemporaneidade); adivinhando-se a sua desilusão por nada de errado ter sido descoberto nesse plano, até apareceu uma autoridade como Freitas do Amaral a validar o processo. Nenhuma prova abonatória o satisfaz ou sossega, e não se coíbe de envolver centenas, e milhares, de pessoas nessa cumplicidade que denuncia impiedoso – jornalistas, deputados, comentadores, militantes, cidadãos. Todos a trabalharem para o encobrimento, o esquecimento, a mentira. Todos contra o Pacheco, pairando por cima de nós no seu tapete voador.

Um livro por semana 25

«Salir d´Outrora» de Carlos Marques Querido

Já foram recenseados nesta coluna diversos livros sobre reis portugueses. Mas isso é (como diz o Povo) outra história. Este livro trata da História daquela gente que não deixa de ser importante só porque não é conhecida. Estas crónicas, antes publicadas nas páginas da «Gazeta das Caldas», tratam duma memória qualificada de Salir de Matos mas também de Santa Catarina, Alvorninha, Benedita e Carvalhal Benfeito, povoações que ao longo de quase setecentos anos tiveram verdadeiras «guerras» com o Mosteiro de Alcobaça. O autor baseia as crónicas em documentos (Torre do Tombo, Biblioteca Nacional, Cartórios Paroquiais, Arquivos Municipais) porque sem documentos não há história mas sim lenda e este não é um livro de lendas. Nestas páginas desfilam figuras de destaque como o arquitecto de Salir de Matos, o conjurado do Carvalhal e o morgado do Formigal (século XVII) ou o deputado do Carvalhal e o Bispo de Santa Catarina (século XIX). Mas não só. Também as pessoas humildes que vivem e trabalham nas vilas dos coutos de Alcobaça são protagonistas. Eles e os seus problemas a propósito de águas e açudes, cadeias e pelourinhos, azenhas, lagares ou moinhos. E do relego – espécie de monopólio da venda do vinho. São terríveis as páginas sobre as vítimas da Inquisição em Salir de Matos: Duarte Lopes, Simão Luís, Francisco Álvares e Violante Gomes sofrem terríveis perseguições até à morte. Tal como são terríveis as páginas da vida de Maria da Purificação, uma jovem mulher casada com um homem mais velho que lhe dava jóias e vestidos mas não lhe dava aquilo que ela queria – usufruir da intensa vida social de Lisboa, muito mais intensa que os Casais da Ponte, onde tinha sido criada.

(Editora: PH – Estudos e Documentos, Grafismo: Inês Querido, Prefácio: Iria Gonçalves, Introdução: Nicolau Borges
)

Demasiado Crespo

De um lado tínhamos um dos ministros mais irritantes do Governo, rival em agrado público do apatetado Pinho, protótipo de amanuense governativo e clone de Sócrates. Não se lhe conhece uma ideia política, filosófica ou artística, nem isso parece fazer falta para o cumprimento das suas funções. Do outro tínhamos a coqueluche do jornalismo português, ícone e figura de culto que congrega simpatias transversais. O destino estava traçado, o Ministro perfilava-se na parede de fuzilamento enfrentando espingardas, metralhadoras, granadas e morteiros. Antes mesmo da primeira questão, entravam na entrevista com o resultado em 10 a 0 a favor do jornalista.

Depois, as supostas fraquezas dum e forças doutro intensificaram as forças daquele e as fraquezas deste. Pedro Silva Pereira esteve impecável, até na pequena parte em que se deixou tomar pela natural emoção. E Mário Crespo falhou espectacularmente, até nas partes que lhe correram melhor. E porquê? Porque enquanto o Pedro se manteve dentro da responsabilidade institucional e política que se exige no seu cargo, o Mário foi para a entrevista como se fosse juiz num tribunal sem advogados. A informação ao seu dispor, a sua lista, não lhe deixava dúvidas: havia merda da grossa. A quantidade de escabrosas suspeitas, fundadas em semanas de crescente pressão na comunicação social que culminaram com declarações de familiares e intervenção policial e judicial, tinham atingido um volume que tornava inaceitável qualquer outro desfecho que não fosse o de uma confissão em directo. Daí veio o permanente acinte, o contínuo preconceito, que se transformou em ofensa na famigerada pergunta: Era possível, no ambiente governativo que se vivia, obter favores por dinheiro?

Mas que filha da puta de pergunta! Que se pode responder? Vamos imaginar que o interrogado respondia com Ora, deixa cá ver… bom… Agora que penso nisso… sim… Acho que sim! Esta seria a ocasião para o interrogador poder gritar Ah! Eu não disse? Apanhei-te! Posturas primárias e infantilóides à parte, o que a pergunta de Mário Crespo pretende é desqualificar a resposta negativa. De facto, responder negativamente é sempre tautológico quando se reclamou previamente a inocência. Para se inquirir da possibilidade de corrupção é necessária uma de duas intenções: ou sair do contexto e circunscrever a pergunta a uma abstracção (do género: Acha que os sistemas políticos são imunes à corrupção?); ou disfarçar uma tese dando-lhe a forma de interrogação (passando a mensagem de que o visado detém informação relativa ao tópico, logo aumentando a probabilidade tanto da possibilidade da corrupção como de o interrogado ter sido cúmplice no caso em discussão). Este sofisma, onde se introduz um subtexto inextricavelmente ligado ao contexto, é particularmente canalha, tóxico, e não se distingue de um ataque que ultrapassa todos os limites deontológicos do jornalismo.

Acontece que não é crível que Mário Crespo seja um canalha. A explicação para o seu erro será antes do foro cognitivo, pois ele revelou ter ido para a entrevista genuinamente convencido do sentido do que ia ouvir; a entrevista era uma mera formalidade e o entrevistado não tinha como escapar aos factos. A sua taça estava cheia, o que viesse de novo iria escorrer para fora. E não seria um badameco dum ministro de terceira categoria, industriado para vir mentir ao público, que lhe iria dar a volta. Logo a ele, o grande Crespo! Por isso perdeu por completo o pé, na sequência do justíssimo protesto pela sua perfídia, e deu neste diálogo:

– O tio era, ou não, tio do Primeiro-Ministro?
– O tio era… Está-me perguntar se o tio era, ou não, tio do Primeiro-Ministro?!
– Era ou não? Ou não? É?…
– Ó Mário Crespo… Está-me a desiludir profundamente…
– Temos casos… Desculpe, desculpe…
– Está-me a perguntar se o tio era tio, e se a prima era prima…
– Não, não… Não brinque com palavras comigo que eu não brinco com certeza.

Este jornalista que não brinca com palavras chegou ao fim da entrevista cabisbaixo, nervoso e a falar em realidades que são matéria de investigação. E, last but not least, ainda levou a estocada final – terminou com voz de falsete a agradecer a entrevista, dizendo que esta tinha sido um prazer. Do outro lado veio uma resposta que me obriga a colocar Pedro Silva Pereira no pódio dos ministros favoritos: Foi uma obrigação.