Borges ou eu

Ao outro, a Borges, é que acontecem as coisas. Eu folheio seus livros e detenho-me, talvez já magicamente, na contemplação de uma frase e da sua música; de Borges já não vêm notícias nos jornais e apenas vejo o seu nome nas paredes do meu quarto ou no écran do meu computador. Agradam-lhe os jardins cujos caminhos se bifurcam, o rigor na ciência, as enciclopédias, a escrita de Deus, o sabor antigo e simples d’As Mil e Uma Noites, a dramaturgia de Jaromir Hladík, a prosa de Mir Bahadur Ali e de Herbert Quain; eu comungo dessas preferências, mas de um modo vaidoso que as converte em atributos de um leitor. Seria um exagero afirmar que a nossa relação é hostil: ele escreveu os seus inúmeros livros para que eu os pudesse ler, e essa leitura justifica-o. Não me custa confessar que tentei copiar-lhe certos textos (como este), mas nem esses me podem salvar, talvez porque o valor já não seja de alguém, nem sequer de Borges, mas da linguagem ou da tradição. Quanto ao mais, estou destinado a perder-me definitivamente e nenhum instante de mim poderá sobreviver no outro. Pouco a pouco, vou-lhe cedendo as minhas horas livres, ainda que me reste algum tempo para exercer o seu hábito de falsificar e magnificar. Pierre Menard, um dos seus escritores favoritos, assumiu o dever de reconstruir literalmente o espontâneo Dom Quixote de Cervantes. Eu hei-de escrever a obra de Borges, não a minha (que é apócrifa), pois reconheço-me mais nos seus livros do que no meu reflexo no espelho ou na duvidosa ramagem da minha árvore genealógica. Há anos, tratei ingenuamente de me livrar dele e passei dos seus jogos com o tempo e com o infinito para outros livros de diversos autores, alguns de valor inquestionável. Mas esses livros agora também são de Borges e reconheço com certo horror a sua influência na obra de todos os grandes escritores, sobretudo na dos que lhe são anteriores. Assim, qualquer livro na biblioteca é da sua autoria: eternamente: as minhas leituras são uma fuga vã no embaraço da escolha (há quem chame a isto labirinto) e nada se perde, nada se esquece – porque tudo desagua no outro.

Não sei qual dos dois formatou este HTML.

9 thoughts on “Borges ou eu”

  1. Um texto que me deixa sem qualificativos. Não sou muito de adjectivar, e neste caso qualquer adjectivo era pobrezito. Temos o JPC no seu melhor – este post e o seguinte, as suas duas facetas que me deixam confusa por sairem das mesmas mãos. Este homem é um assombro e o tempo que esteve de pousio fez-lhe muito bem.

  2. JPC

    Já agora deixa-me fazer coro com o resto da rapaziada. Valupi dixit e eu acrescento que escreveste lindamente sobre a tua personalidade, dando-nos, a meu ver, uma amostra do tipo de informação que daqui a uns cinquenta anos ou menos irá provavelmente constar, com variações para cada caso, em todos os bilhetes de identidade do cidadão comum da grande república que nos estão a preparar. Fico tambem a pensar se noutras áreas do teu intelecto te pareces mais connosco, por exemplo, se bates ovos e fritas omeletes de acordo com fórmulas e práticas tradicionais.

    Mas do que realmente gostaria era que tivesses falado um pouco dos mistérios de Borges, das cidades obscuras e dos mundos paralelos e dos vinculos com um judeu português da linha de Cascais que se afirmava conhecedor de segredos que estariam tambem na posse do grande escritor.

    Apesar disso, mereces ficar entre os primeiros na minha lista de homens enigmáticos que tenho encontrado na blogosfera portuguesa. Se calhar até havia alguma mensagem codificada na história da tua gatinha … Se havia, não vi. Desculpa.

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