A campanha enviesada contra a fiscalização de dois preceitos do OE

Já estava à espera. Cumpre-se a Constituição (CRP) com normalidade e, de imediato, quando os juízes do TC estão, ou deveriam estar, postos em sossego a decidir sobre um pedido de fiscalização da constitucionalidade – essa coisa que foi inscrita na CRP em 1982 e que já resultou em vários Acórdãos – saltam para o terreno os comentadores enviesados.
O grau de loucura – de estratégia? – que tenho visto animar colunistas e comentadores é tal que tenta pôr em causa a percepção do cidadão comum acerca de um dos órgãos e mecanismos ao mesmo associados para a defesa da CRP.
Lemos os jornais e ouvimos os comentadores e é impossível não dar cabo de três equívocos propositadamente criados para fins políticos e para uma infantil e terrorista tentativa de influenciar os juízes do TC:
1) Em primeiro lugar, diz-se que o pedido de fiscalização foi asneira porque estamos perante uma questão política. Esta patética afirmação esquece que todas, mas todas as normas, comportam um elemento político. Isto é, qualquer lei é uma decisão política. É esta dupla dimensão do acto normativo que explica, em parte, a composição do TC. Levando o argumento a sério, nenhum pedido de fiscalização faria sentido.
2) Em segundo lugar, afirma-se que o pedido fragiliza o PS e, pior ainda, por 17 Deputados do PS terem ficado “colados” ao BE. Seria bom reler a CRP e verificar que é intenção da mesma que o pedido seja prerrogativa dos Deputados – ao contrário de outros poderes que são dos grupos parlamentares. É o Deputado que decide, em consciência, se, para além do combate político a uma norma, se impõe uma consulta sucessiva ao TC. Havendo pelo menos 23 Deputados com essa convicção, diria que devem exercer, mais do que um poder, um dever, porque a CRP confiou-lhes esse impulso. O figurino de 23 Deputados está precisamente pensado para que o pedido não seja necessariamente partidário. Se, neste caso, os Deputados do BE concordaram com a arguição de inconstitucionalidade de duas normas melhor. Significa que o sentimento de infracção da lei fundamental foi transversal a Deputados de dois partidos, que discordam em tantas coisas, mas que tiveram este caso por evidente.
3) Em terceiro lugar, ouve-se o argumento terrorista, mesmo da voz de Marcelo Rebelo de Sousa (que diz ter lido o artigo de Fernanda Câncio, que elogia, mas que não o convenceu – aquele hino de sensatez, digo eu): – “passa pela cabeça de alguém que o TC declare a inconstitucionalidade do OE??? E como fica o PS que assinou a TROIKA? Seria o caos. Temos de interpretar a CRP de acordo com as circunstâncias do momento e não podemos ser fixistas”. Esta moda de enviesamento da realidade está a pegar. Tudo isto é, pura e simplesmente, mentira. Ninguém requereu a declaração de inconstitucionalidade do OE. O pedido refere-se a duas normas, as que no nosso entender, nem em tempos de crise resistem ao teste da constitucionalidade. De resto, os dois preceitos em questão – cortes de subsídios a funcionários públicos e pensionistas, para simplificar – não são imposição de qualquer acordo internacional, são invenções de um governo de direita socialmente selvagem. Ninguém – dos três que redigimos o requerimento – tem uma interpretação datada da CRP. Sabemos o que foi escrito no Acórdão de 2011 e por maioria de razão ainda nos sentimos com mais razão. Mas note-se que o argumento isolado das “circunstâncias” a justificarem o que em tese seria inconstitucional, no limite leva à suspensão da CRP: bastam as “circunstâncias”. Ora, é precisamente em circunstâncias como as presentes que os nossos olhos devem estar mais abertos do que nunca contra o arbítrio. Estas duas normas, mesmo com as “circunstâncias”, são nulas. E alguém pensa que os juízes vão fazer isto ou aquilo? Eu penso. Acredito numa declaração de inconstitucionalidade. Acredito que pode revestir um alcance máximo. E se assim for? Ouvi mal ou a preocupação é o jogo político subsequente? A Troika? E mesmo que fossem normas do memorando? Se forem declaradas inconstitucionais, afinal de conta, quem foram os infractores? Desde quando é que passou a ser coisa má repor a legalidade? E desde quando é que nestas discussões os truques argumentativos passaram à frente das vidas concretas (gorduras do Estado?) que estão a ser decididas neste momento no TC? E se o TC não nos der razão? Vivemos numa sociedade aberta de intérpretes, continuarei convicta da inconstitucionalidade daquelas normas, por violação do p. da igualdade, do p. da proporcionalidade, do direito fundamental à retribuição, do p. da segurança jurídica e do direito à segurança social. Continuarei convicta de que cumpri o meu dever, sem jogos políticos, apenas por dever. O dever é mais alegre pela confiança numa decisão positiva e de resto gostaria de perguntar a muita gente esta coisa simples: se Cavaco após formular um claro juízo de inconstitucionalidade sobre estas matérias não fez nada como é seu uso, como poderiam os Deputados convictos da necessidade de uma decisão do TC nada fazer e voltar a levantar a cabeça?

13 thoughts on “A campanha enviesada contra a fiscalização de dois preceitos do OE”

  1. Muito bem, Isabel. Se o Tribunal Constitucional alemão é importante ao ponto de bloquear a Europa por 3 meses, por que o há de ser menos a nossa Constituição?

  2. Parabéns e obrigado, Isabel! Quanto a mim não está tudo doido, não! O que há é uma corja muito, muito lúcida capaz de atropelar tudo e todos para que a não afastem do “pote”!.

  3. tenho bué de dúvidas se devem ser os juízes a governar o país inviabilizando decisões políticas, mas a isabel deve ter resmas de códigos e paletes de argumentos. espero que não andemos a confundir coerência com coirência.

  4. Muito bem, Isabel. Já escrevi, no meu sítio, algo no mesmo sentido, embora sem o seu brilhantismo. A campanha de que também já me tinha dado conta (hoje no Público vem mesmo um editorial que é um absurdo total) uma vergonha.

  5. Muito bem, Isabel. Alguma luz naquele parlamento escurecido e politiqueiro.
    O PR tem uma atitude quando o governo é um e tem outra quando o governo é dos seus. Vergonhosa dualidade de critérios, que nem cuida em disfarçar.
    Quanto ao constitucionalista Marcelo não tenho a menor dúvida que diria exatamente o contrário se no governo estivessem os da sua cor.
    Pobre Portugal, quando o PR mente sobre as suas pensões e a opinião pública é deformada pelas mentes crapulosas dos comentadores arregimentados por uma direita bafienta, vingativa e maldosa.
    E tão poucos como a Isabel para os enfrentar!
    De minha parte, obrigado.

  6. anonimo, as decisões (neste caso a lei do orçamento) lá por serem decisões “políticas” de uma maioria, não deixam de constituir alvos possíveis de questionamento sobre a sua constitucionalidade. A governação e a política devem fazer-se dentro da legalidade, certo? Se não fosse assim, era a rebaldaria total, não era?

    Até o Cavaco disse que o corte dos 13º e 14º meses era um imposto iníquo, se aplicado apenas a um sector da população, sugerindo que, como tal, era ilegal. Claro, fingir que é oposição e recurso dos espoliados e desfavorecidos até convém ao gajo. Tudo bem, nós sabemos isso. Como foi ele que pariu este governo, claro que não ia agora pôr-lhe entraves, por isso não utilizou a faculdade de pedir a fiscalização preventiva da lei do OE. Se o governo fosse do Sócrates, o Cavaco teria pedido a fiscalização preventiva, isso parece-me certo e sabido. Mas o gajo disse o que disse sobre o corte dos subsídios e vai-se gabar futuramente de o ter dito. E nós, somos mais laranjas do que ele?

    Os deputados signatários do pedido de fiscalização sucessiva usaram o seu direito para questionar a legalidade da lei do orçamento. Muitos parabéns a eles por isso! É preciso que o governo e os deputados da maioria saibam que isto não é a quinta deles. Se não houvesse ninguém na AR capaz de o fazer, triste e merdoso país seríamos…

    Dito isto, não espero muito que os subsídios que querem roubar sejam restituídos aos seus titulares. Mas é muito bom que o TC se explique e mostre o seu jogo e a sua cara. Eu quero saber exactamente porque é que do ponto de vista constitucional este roubo é legal! Ando a pensar em aprender a profissão de ladrão e quero saber com que argumentos me posso futuramente defender.

  7. Prezado Júlio, ser inconstitucional é ainda muito mais grave do que ser apenas ilegal! A ilegalidade é uma afronta à Lei, a inconstitucionalidade é uma afronta à Lei Fundamental do País. Ou seja, a um regime, a todo um Povo. É gravíssimo!

    Deveria até fazer-se uma pedagogia cívica eficaz, alertando para a irresponsabilidade que é fazer-se tábua-rasa da Constituição, seja por que motivos for, seja em que circunstâncias for!! Muito ao contrário, por sinal, do que temos visto recentemente, quando até constitucionalistas, assaz levianos, como o recém-jubilado Gomes Canotilho têm a “lata” de propagar aos megafones da comunicação social…

    E quem subestima, ignora, ou tenta iludir a possibilidade de o Governo estar a agir à margem, ou mesmo contra, a Constituição da República não está, de todo, do lado da legalidade, nem da racionalidade, nem sequer do simples bom-senso: está antes a brincar com o fogo!

    Espero bem que a norma orçamental ora fiscalizada seja declarada inconstitucional, como efetivamente penso que merece, no meu leigo entender de mero Cidadão.

    Porém, ainda haverá outro patamar em que a mesma norma irá ser fiscalizada, neste caso por iniciativa judicial dos lesados: o da legalidade! Porque, mesmo não sendo inconstiucional, poderá vir a ser declarada ilegal. O que, embora não sendo tão grave, em termos políticos, para os atuais Governo e Presidente, terá os mesmos efeitos práticos em termos orçamentais, ou seja, obrigará o Governo e a A. R. a encontrar soluções sérias para as contas do Estado e que não se inspirem apenas nos métodos dos pistoleiros do faroeste…

  8. Cara Isabel,
    mais uma vez aponta com eficácia e dispara certeira. Pena é que na sua bancada tanta gente ande a apanhar bonés apenas à espera de um dia voltar a ser poder outra vez.

  9. Caro Teófilo M.,

    em regimes democráticos, até na Oposição se pode também exercer algum Poder político! Assim haja princípios éticos, coragem e coerência, pelo menos como os já demonstrados pela Deputada Isabel Moreira.

  10. Não desanime, deputada Isabel. Ainda que o professor Marcelo tenha saído em defesa do Governo, para mostrar «serviço» e para condicionar os juizes do TC, vamos esperar para ver. Para já, o vosso trabalho é meritório. Faz a denúncia da falta de equidade nas medidas tomadas por este Governo. Para mim, é incompreensível que se obriguem os reformados e os trabalhadores do Estado a pagar a crise, retirando-lhe dois meses de rendimento, e se deixe de lado os demais trabalhadores e pensionistas, como é o caso da CGD, do Banco de Portugal e da banca em geral. Então os sacrifícios são apenas para alguns, não devem ser para todos, por igual? Isto é uma infâmia.

  11. De facto, há muito que perdi o respeito pelo TC português.
    A política impera, em vez do Direito.
    Nos últimos 4-5 anos, a perda de racionalidade jurídica e de preocupação com o Direito Constitucional por parte do TC têm sido crescentes. Uma vergonha!

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